Autor: Sylvio Ferraz Mello.

abrahao de moraes

Abrahão de Moraes, diretor do IAG-USP de 1955 a 1970, atuou incansavelmente pelo desenvolvimento da Astronomia e das Ciências Espaciais no Brasil. Como uma homenagem feita pela comunidade astronômica internacional, uma cratera da Lua é conhecida, hoje, como a cratera De Moraes
Nasceu em Itapeceríca da Serra, SP, em 17 de Novembro de 1917, filho de José Elias e Guilhermina Pires de Moraes. Foi um dos primeiros alunos da recém criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo para onde se transferiu após dois anos na Escola Politécnica e onde graduou-se em Física em 1938. Participou com Mário Schenberg e Walter Schützer do primeiro grupo de pesquisa em Física Teórica criado na USP pelo Professor Gleb Wataghin. Desse tempo são seus primeiros trabalhos publicados pela Academia Brasileira de Ciências.

Em 1945 participou de concurso para a cadeira de Mecânica Racional da Escola Politécnica com uma tese sobre Teoria das Percussões. Classificou-se em segundo lugar, um resultado bastante contestado na época. A classificação lhe valeu os títulos de Doutor em Ciências e de Livre Docente. Dedicou-se intensamente ao ensino tendo sido professor em diversas unidades da USP, onde seus cursos de Mecânica Racional, Mecânica Analítica, Mecânica Celeste e Física Matemática se notabilizaram pela perfeição e clareza de suas exposições. Em 1949 sucedeu Wataghin na chefia do Departamento de Física.

Sempre se interessou pela Astronomia e em 1949, juntamente com o Professor Aristóteles Orsini e outros, fundou a Associação de Amadores de Astronomia de São Paulo da qual foi por varias vezes diretor. Foi então convidado para escrever o capítulo “A Astronomia no Brasil”, do livro “As ciências no Brasil” de Fernando de Azevedo, publicado em 1955. Também em 1955, por indicação do Prof. Aristóteles Orsini, então diretor da Faculdade de Odontologia da USP, foi convidado e assumiu a direção do IAG. Logo de início cumpriu-lhe a tarefa de orientar as atividades do IAG no Ano Geofísico Internacional.

Em 1957, logo após o lançamento do primeiro satélite artificial da Terra (o Sputnik I), suas passagens eram registradas no IAG. No ano seguinte, o registro das passagens pelo meridiano de São Paulo do satélite Explorer I, de vida mais longa, permitiu observar os efeitos do achatamento da Terra na precessão do plano orbital e determinar o seu valor. As observações, bastante precisas, foram feitas usando um rádio-interferômetro que havia sido instalado no IAG por Luiz de Queiroz Orsini e Antonio Helio Guerra Vieira, da Escola Politécnica, para o estudo da ionosfera através das alterações que provocava em ondas de rádio oriundas do espaço sideral.

Estimulado por esses sucessos, Abrahão de Moraes dedicou-se a elaborar uma teoria do movimento dos satélites artificiais da Terra. Sua teoria, publicada pela Academia Brasileira de Ciências e uma das primeiras publicadas, contém o cálculo das principais perturbações orbitais devidas ao achatamento da Terra. Sua visão matemática lhe fez de imediato perceber que no caso particular do movimento de um satélite no plano equatorial da Terra, as equações são integráveis rigorosamente se forem usadas funções elípticas. O artigo inclui a solução desse problema em termos de funções de Jacobi e de Weierstrass.

Mas essa história não termina aqui. Nesse artigo também se mostra que a equação do caso equatorial é idêntica à que se obtém em Relatividade Geral para o movimento de uma partícula em um campo com simetria esférica (ds2 de Schwarzschild). Desde os trabalhos iniciais da Relatividade Geral, as soluções do movimento nesse caso eram obtidas por processos de aproximações sucessivas. O artigo de Abrahão foi o primeiro a incluir uma solução rigorosa para as equações do movimento resultantes do ds2 de Schwarzschild. Aliás, Abrahão em nenhum momento renunciou ao seu passado de físico. Depois do artigo sobre satélites artificias, voltou a trabalhar com Paulus Aulus Pompéia em temas relacionados à análise estatística de séries de eventos sucessivos, em que colaboravam desde os tempos de Gleb Wataghin na USP.

Possuía um conhecimento ímpar das ferramentas matemáticas da Física e um talento inigualável para a solução de problemas. Exemplo disso encontra-se em um artigo de Wilfred Stevens publicado no Monthly Notices da Royal Statistical Society sobre series de diluições geométricas. Wilfred Stevens, egresso de Cambridge e que na sua juventude trabalhou com R.A.Fisher e F.Yates, optou pelo Brasil e aqui ajudou a construir o Departamento de Estatística da USP. Copio partes de um parágrafo desse artigo: “Unfortunately the integrals prove to be intractable. Consider the simplest case … By numerical integration, the writer showed the result to be log 2, and an ingenious proof of this result has been found by Professor Abrahão de Moraes” (Mon. Not. Roy. Stat. Soc. Ser. B, 20, 205-214, 1958).

A escolha de Abrahão de Moraes para dirigir o IAG em 1955 foi fundamental para o futuro daquela instituição e da Astronomia brasileira. Feliz foi a circunstância de que isto tenha ocorrido quase ao mesmo tempo em que Fernando de Azevedo o convidou para escrever o capítulo de Astronomia de seu livro “As Ciências no Brasil”. Aquele trabalho lhe deu uma visão abrangente da Astronomia no Brasil que, após um início razoável nos tempos do Império, havia desaparecido – as últimas pesquisas em astronomia realizadas no Brasil, os trabalhos teóricos sobre o movimento dos asteroides e as observações feitas com a luneta zenital para a determinação da variação da latitude do Rio de Janeiro, ambos de Lélio Gama, datavam da década de 1930. O contraste com o progresso que se verificava em outras disciplinas científicas era gritante. Nas conclusões daquele capítulo, Abrahão escreveu:

“Para que possa nosso país cooperar eficazmente para o progresso da astronomia, mister se faz a ereção de um observatório, ou a transferência de um dos existentes para uma região de clima mais propício, afastada dos grandes centros urbanos. Torna-se ainda necessário atrair para nosso meio alguns astrônomos de grande capacidade e enviar aos grandes estabelecimentos europeus e americanos, nossos jovens que se interessem pelos estudos astronômicos. Procedimento semelhante, empregado em outros domínios científicos, conduziu já a resultados altamente compensadores.”

Certamente, neste final, Abrahão de Moraes tinha em mente o que havia sido feito em diversos departamentos da USP, inclusive no departamento de Física. Por essa razão, uma de suas prioridades foi dar apoio e orientação inicial a pesquisadores jovens, os mesmos que anos mais tarde constituiriam os primeiros grupos de pesquisa em Astronomia Dinâmica, Astrometria e Astrofísica de nosso país. Esses grupos, depois da transformação do IAG em unidade de ensino, formaram o Departamento de Astronomia do IAG.

Outra prioridade que elegeu foi a biblioteca do IAG, na qual investiu tudo o que pode. Atualizou todas as principais coleções de periódicos e as completou adquirindo de livreiros internacionais especializados os volumes que faltavam para completa-la, manteve um programa contínuo de aquisição de livros novos e adquiriu um grande número de obras clássicas. Essa biblioteca foi fundamental para a transformação posterior do IAG em uma importante instituição de pesquisa.

Ao mesmo tempo, com a direta participação de Jean Delhaye, diretor do Observatório de Besançon e mais tarde diretor do Observatório de Paris, elaborou um plano destinado a dotar a nova geração com instrumentos para o trabalho astronômico. O observatório astrométrico do IAG, em Valinhos (que hoje se chama Observatório Abrahão de Moraes), equipado inicialmente com um astrolábio e um círculo meridiano, foi inaugurado em 1972.

Em 1964, com o auxílio de uma comissão de astrônomos franceses liderada por Jean Rösch, iniciou os trabalhos visando a instalação de um observatório astrofísico para uso dos cientistas brasileiros. O Dr. Luiz Muniz Barreto, então diretor do Observatório Nacional, que foi o seu braço direito nessa tarefa e que coordenou os trabalhos iniciais de escolha de sítio, assumiu a liderança do projeto após o prematuro falecimento de Abrahão de Moraes e o levou a termo construindo o que hoje é o Laboratório Nacional de Astrofísica.

Entre 1959 e 1967, Abrahão de Moraes representou o Brasil no comitê técnico da Comissão do Espaço Cósmico da ONU. Em 1967 foi aprovado para a cátedra de Cálculo Diferencial e Integral da Escola Politécnica da USP, transferida, após a reforma universitária de 1969, para o Instituto de Matemática e Estatística. De 1965 a 1970, presidiu o Grupo de Organização da Comissão Nacional de Atividades Espaciais (hoje INPE) em São José dos Campos, SP.

Faleceu em São Paulo em 11 de Dezembro de 1970.

Em vida recebeu diversas homenagens por sua incansável atuação pelo desenvolvimento da Astronomia e das Ciências Espaciais no Brasil: as “Palmes Académiques” da França, o diploma da National Science Foundation dos Estados Unidos e a Ordem do Mérito Aeronáutico do Brasil. Foi membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Sua memória foi homenageada pela comunidade astronômica internacional que deu o seu nome a uma cratera de impacto na Lua: A cratera De Moraes, [Latitude 49.5° N, Longitude 143.2° E] com 53 km de diâmetro.