A morte é a nossa maior certeza e o nosso maior mistério, um tema que levanta polêmica entre ciência, espiritualidade e filosofia. É preciso respeitar tudo que há no mundo, mas para longe de se discutir se há ou não vida após a morte, é na fusão da poesia concreta de Augusto de Campos com a musicalidade de Caetano Veloso em “Pulsar”, música gravada pelo músico baiano em 1986, em que se espraiaram os sentimentos da distância imensa entre a partida do professor Aníbal Fonseca de Figueiredo Neto, aos 67 anos, em trágico acidente no dia 24 de outubro e a saudade que deixa entre a família, cientistas e museus nos quais o físico de Belém (PA) criou um misto de arte e brinquedos científicos.

“Sempre adorei ciências e me tornei professor por acreditar que todo mundo deveria saber um pouco mais acerca dos fenômenos naturais e da tecnologia presente no nosso dia a dia. Por achar que todas as crianças deveriam saber por que o céu é azul, por que a Lua não cai, como os óculos corrigem a nossa visão e uma série de outras curiosidades que ainda temos mesmo depois de adulto”, diz o professor Aníbal, em um vídeo no YouTube. Conhecido por todos como alegre, irreverente, extremamente humano, crítico de uma suposta superioridade da Física sobre todas as outras áreas da ciência e apaixonado por incentivar que a ciência seja viva, em um meio de fruição estética daquilo que é intangível à matemática.

Professor Anibal com o filho Lucas, em foto do início dos anos 2000.

Emocionado com a partida do pai, o publicitário Lucas Dini lembra do carinho e do amor com os quais ele foi criado, sempre dentro do laboratório-fábrica de onde saíram brinquedos artístico-científicos para museus de várias do Brasil. Ele nunca esquece que, desde pequeno, o pai buscava lhe explicar a física por trás de fenômenos simples do cotidiano: como o motivo de o lacre de alumínio dos copinhos de plástico se elevar sozinho quando se sobe uma serra ou se viaja de avião.

“É a diferença de pressão”, dizia o pai. “Lá em cima, a pressão do ar diminui, e o ar preso dentro do copo se expande, empurrando o alumínio para fora”, lembra Lucas. “Ele explicava para mim, explicava para a aeromoça, explicava para todos: quem estivesse passando ali, sentado na frente, sentado atrás, ele fazia questão. Tem muito sentido para mim isso, desses primeiros momentos”, diz o publicitário, que continuará o legado do pai. “O legado que meu pai deixou é para ter orgulho demais. Um orgulho gigantesco”, afirma ele, que também é músico e cujo grupo de samba Camisa Feia chegava a reunir até 400 pessoas no galpão do antigo endereço da empresa-laboratório do pai no Largo da Batata, Zona Oeste de São Paulo. Aníbal amava samba, e MPB de Caetano e Chico Buarque. Quando saía para dançar, levava camisetas extras, para trocar no baile e não estar completamente suado quando tirasse alguém para dançar.

Dos brinquedos científicos a instalações robustas e belas

Luís Carlos Bassalo Crispino, coordenador da Pós-Graduação em Física da Universidade Federal do Pará (UFPA), cultivou uma grande amizade com Aníbal. O seu tio, aliás, era o professor José Maria Filardo Bassalo, que foi quem incentivou Aníbal a cursar Física na Universidade de São Paulo (USP) na década de 1980. Crispino montou na UFPA o Museu Interativo da Física com um conjunto inicial de instalações construídas por Aníbal em 2008. Aníbal costumava dizer que “a pessoa, quando chega diante de uma instalação científica, ela tem que aprender, mas tem que se alegrar não só pelo aprendizado, ela também se alegra pela beleza plástica daquilo que ela está diante”, contou Crispino, que foi vencedor do 45º Prêmio José Reis de Divulgação Científica e Tecnológica, concedido neste ano na categoria Pesquisador e Escritor pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Crispino afirma que o amigo Aníbal, que conheceu quando também estudava na USP, por volta de 1990, buscava construir instalações científicas que causassem emoção. “Tem que ser algo que dê prazer não só para o intelecto”, pensava Aníbal.

Gerador Van de Graaff exposto no Museu Catavento.
Gerador Van de Graaff exposto no Museu Catavento.

Segundo Crispino, Aníbal criava seus equipamentos científicos com qualidade e robustez, a ponto de o Museu Interativo da Física da UFPA manter ainda hoje os equipamentos iniciais em pleno funcionamento. “Tem coisas que eu comprei dele em 2008, e nós estamos em 2025, entende? E elas continuam funcionando muito bem. Claro que passaram por manutenções, algumas delas à distância, com os equipamentos aqui em Belém e ele em São Paulo, dando orientações por telefone e por vídeos”, diz.

Crispino lembra de algumas das inspirações na vida do amigo: Aníbal se encantou com as “mágicas” dos camelôs do centro de São Paulo, chegando até mesmo em defender um curso de física para camelôs. Aníbal ficou encantado com os camelôs realizarem truques que (sem que eles soubessem) tinham a física e a ciência como base. Um destes truques era baseado na mecânica dos fluidos, no experimento clássico do ludião. O camelô fazia pressão em um recipiente flexível com água, e uma caneta descia. Aquilo parecia mágica, mas era física, era ciência. A dissertação de mestrado de Aníbal acabou não sendo sobre um curso de física para camelôs, mas teve como tema “A Física, o Lúdico e a Ciência no 1º Grau”.

Truques podem fascinar crianças e motivá-las a aprender Física. Aníbal entendia muito bem a importância em uma criança aprender brincando, daí a ideia dos brinquedos científicos. Aliás, empresa de Aníbal tinha inicialmente o nome de “Atelier de Brinquedos Científicos”, com base nesta ideia.

Com o passar do tempo veio a necessidade de construir instalações científicas de maior porte, para equipar os centros e museus de ciências por todo o país. Mas Aníbal nunca abandonou os brinquedos científicos, uma prova isso foi o projeto Brinca Ciência, desenvolvido juntamente com a prefeitura de Santo André, nas escolas municipais daquela cidade. “A maior dificuldade de uma região em se desenvolver, para mim e para todo mundo, está diretamente relacionada com a formação que as crianças e jovens deixaram de ter na educação fundamental, na educação básica”, afirma Crispino, que defende que o projeto desenvolvido por Aníbal no ABC paulista, deveria ser replicado em todo o País.

De Freire a Boal

“A experiência do Aníbal como físico tem muito do contato que ele teve com Paulo Freire e outros autores que refletem sobre a condição humana, em especial, a partir do momento em que a humanidade adquire um conhecimento tão vasto que muitas pessoas acabam sendo alijadas desse conhecimento”, explica o professor de física Arnaldo Vaz, do Colégio Técnico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ex-Secretário para Assuntos de Ensino da Sociedade Brasileira de Física (SBF). “Ele se inspirava muito também em Augusto Boal e seu Teatro do Oprimido”, explica o professor.

“O Freire era categórico: não era para repetir as palavras dele, era para inspirar. E o Aníbal foi uma dessas pessoas que conseguiu fazer isso. Um físico conscientizador, um físico artista, que conseguia, – por ter sido, talvez, ator de teatro amador, ter sido, inclusive, coroinha –  ser uma pessoa que prezava pela cultura amazônica”, complementa Vaz, lembrando das reuniões na casa de Aníbal nas quais ele preparava pratos típicos do Pará em uma república na Bela Vista. “Era uma das coisas que nos unia. Ele era um grande agregador. Ao mesmo tempo, ele era muito crítico da incoerência dos seres humanos, apesar de todos sermos incoerentes, ele conseguia, com muita alegria, com uma capacidade de fazer rir sobre as nossas contradições, isso desde a graduação.”

Em plena Ditadura Militar, Vaz lembra que Aníbal era um crítico dos interventores da USP impostos por Paulo Maluf, então governador do Estado, mas igualmente mordaz com partidos de esquerda que recebiam apoio estrangeiro. Além disso, Aníbal não reagia bem à tendência do Físicos de se sentirem superiores a outras áreas de atuação, além de questionar a prática de produção de relatórios, muitos dos quais, eram comprados pelos alunos.

“Ele era generoso, atento, sensível e, nesse sentido, ele conseguia fazer críticas à universidade, como, por exemplo, uma prática de avaliação, que, na verdade, não promovia a aprendizagem”, explica Vaz. “Aquele sistema de aprendizagem de fazer relatório é importante em si, mas a percepção dos professores de que aquilo não estava funcionando não fazia muita diferença. Em parte, porque no Instituto de Física da Universidade de São Paulo, vários professores se consideravam cientistas que tinham que dar aula, e não pessoas que estavam ali educando jovens para serem cientistas.”

Liceu de Vícios ou de Artes?

Em webinário realizado por Crispino na pandemia, Aníbal lembra que após o fim da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências (Funbec), na qual ele trabalhou ativamente, chegou a passar em sua cabeça em criar um bar que se chamaria Liceu de Artes e Vícios. A opção, no entanto, foi a de levar a irreverência de um ambiente descontraído de um bar para aplicar à criação de brinquedos científicos, em 1991, com a criação do Atelier de Brinquedos Científicos, hoje conhecida como Ciência Prima. Com o sucesso da iniciativa, o físico e divulgador científico Ernesto Hamburger indicou Aníbal para trabalhar num projeto ousado do então governador José Serra: criar no Palácio das Indústrias, um prédio de 1924, no centro de São Paulo, o Museu Catavento, instituição da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas de São Paulo.

Presidente do Conselho de Administração do Museu Catavento, Sergio Freitas.
Presidente do Conselho de Administração do Museu Catavento, Sergio Freitas.

“O Aníbal foi um companheiro de primeira hora. Desde os primeiros momentos em que traçamos as linhas gerais aqui do Catavento como um museu de ciências”, lembra o presidente do Conselho de Administração do Catavento, Sergio Freitas. Em sua concepção, o Catavento é dividido em quatro seções: Universo, Sociedade, Vida e Engenho. Esta última ficou a cargo de Aníbal construir com brinquedos científicos, que até hoje encantam os visitantes. “A gente dava uma ou outra sugestão, mas, na verdade, foi ele quem fez. Ele, obviamente, adorava isso, fez isso anos e anos aqui. E não foi só na montagem do Catavento: durante os 18 anos que estamos aqui, computando os anos de construção, um, dois anos, ele colaborou conosco. Além do mais, era muito amigo. Uma pessoa muito simpática, muito simples também, muito despojado. Então, eu tinha uma grande admiração por ele”, afirma Freitas. “Ele era uma pessoa tranquila, emotiva nesse aspecto, assim. Um homem bom. Eu sintetizo colocando-o entre os justos.”

Monalisa de cabelos arrepiados

Freitas conta com orgulho que a visitação máxima do Catavento, de 15 mil pessoas por dia, é idêntica à visitação média do Museu do Louvre, em Paris, na França, mesmo sem a Monalisa. E, além de atrair gente de todo o País, o Catavento também vai até o interior do Estado de São Paulo. Em parceria com a Secretaria da Cultura, o museu lançou neste ano um projeto de carretas que “são basicamente da área do Engenho, da área do Aníbal, que viajam aqui pelos municípios do interior e vêm fazendo um bom sucesso”.

Freitas lembra que o museu está planejando uma homenagem ao físico. “Ele realmente merece porque foi uma figura ímpar aqui dentro. Nós temos outras pessoas que também deram contribuições muito, muito grandes aqui, como a biologia, a Sônia Lopes foi quem cuidou da Biologia”, afirma Freitas. É nesse ala, aliás, de onde vem a inspiração da jovem Manoela, de 14 anos, de Mogi das Cruzes, que pretende seguir a profissão de bióloga. Naquele dia, a sua escola realizou duas excursões, uma para o Catavento e outra para o Hopi Hari, mas ela escolheu o Palácio das Indústrias.

Pedro Almeida, Supervisor Educativo do Museu Catavento.
Pedro Almeida, Supervisor Educativo do Museu Catavento.

A entrevista ocorreu enquanto ela brincava na seção Engenho, criada por Aníbal, no brinquedo Gerador de Van de Graaff, cujas cargas elétricas fazem com que o cabelo de quem toque o aparelho se arrepie. “Eu achei bem legal, uma experiência única. Eu já tinha testado esse negócio com balão, que também faz o cabelo arrepiar. Aí também foi muito legal. Eu não gosto do meu cabelo arrepiado, mas dessa vez eu gostei”, disse ela, estudante do 9º ano do Ensino Fundamental.

Pedro Almeida, Supervisor Educativo do Museu, conta que o gerador é a “Monalisa” do Catavento, que instiga a nossa imaginação sobre como ficaria os cabelos da moça pintada por Leonardo Da Vinci se visitasse o Van de Graaff de Aníbal. “A gente tenta até desvincular um pouco (o museu do gerador) para o público saber que não é só isso que a gente tem no museu, só para mostrar o quanto que é o resultado que isso traz. Que é muito procurado. Claro, tem a máquina de fazer raio, que foi também construída por ele (Aníbal), enfim, vários outros”, explica Almeida, que ficou amigo do físico paraense logo em seus primeiros dias de trabalho.

“Ele fazia com muito carinho, pensava muito bem nos projetos para que tivesse o melhor resultado possível e se encantar ao ver uma criança, não só a criança, a gente está focando na criança, mas sim, na verdade, todo o público”, diz. “De ver aquela interação com aquele experimento, alguns experimentos de física, mostrar aquele resultado que a gente quebra um pouco essa ideia de que física é só para quem está na academia científica, aquela coisa de um gênio, né? Tirar esse misticismo da ideia de ter um gênio para poder estudar ou interagir com o conteúdo de física.”

Inspiração e legado

Marco André Almeida Pacheco, professor do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) criou o projeto Ludociência inspirado por Aníbal. “Eu tive a ideia de montar um pequeno centro de ciências em Volta Redonda dentro do campus do Instituto Federal do Rio de Janeiro e o nome do Aníbal me veio à mente na época, e assim criamos o Trilha da Ciência. Eu conheci o Aníbal há mais ou menos uns 20 anos atrás numa palestra que ele deu na USP, durante o Simpósio Nacional de Ensino de Física. Eu assisti aquela palestra e falei assim: esse cara é um gênio e um visionário, porque de fato a gente via as instalações dos museus de ciência”, explica.

Para Pacheco, o grande legado do Aníbal está na arte que ele trouxe para o Brasil. “Ele foi um dos pioneiros em juntar esses fenômenos das ciências com essa beleza plástica e o encantamento. E eu ouso dizer que não há quem tenha conhecido o Aníbal e quem não tenha se encantado com ele. O Aníbal poderia gerir melhor seus negócios, mas acho que ele não estava preocupado com isso. Ele queria sobreviver. Se desse para pagar as contas e sobreviver estava ótimo, ele estava querendo fazer os equipamentos dele e tentava ajudar e encantar todo mundo. Muitas das vezes ele dava brinquedos de graça e não se preocupava com lucro.”

Na semana do acidente com Aníbal, Pacheco havia tentado trazê-lo a um evento em Volta Redonda, e se lamenta de não ter insistido para que o amigo estivesse presente, para que o trágico destino fosse evitado. “Passei o sábado inteiro, o final da tarde e a noite chorando muito, porque eu achava que eu deveria ter insistido um pouco mais para o Lucas e o Aníbal estarem comigo. Mas hoje eu entendo que talvez as coisas aconteceram porque tinha que acontecer e não seria ir para a Volta Redonda que mudaria o rumo das coisas”, lamenta Pacheco.

Ninguém sabe os mistérios da vida, mas há uma certeza. A inspiração que Aníbal promoveu em tantos professores, cientistas e visitantes dos museus de sua arte educativa continuarão vivos. Embora triste com a despedida do amigo, Pacheco comemora o anúncio da inauguração da sua primeira exposição no Museu Espaço Ciência em Recife, Pernambuco, no dia 18 de novembro. A ideia é continuar estimulando a ciência em crianças, adolescentes e adultos, como a estudante Luísa Cruz Marcon, estudante de Biomedicina da USP.

A estudante de Biomedicina da USP Luísa Cruz Marcon (blusa listrada) junto amigas em visita ao Museu Catavento.

“Acho importante ter museus assim, principalmente para as crianças, pois faz um apelo maior para a educação, que hoje em dia a gente sabe que é muito complicada. E tem muita informação falsa também na internet. Então, eu acho que é importante ter um apelo maior e as crianças se interessam mais principalmente pelas ciências, e essas partes que não são tão abordadas hoje em dia na educação do Brasil”, afirma.

Sérgio Freitas, ao falar também sobre o setor de astronomia, mantido pelo Instituto de Astronomia da USP, lembrou da célebre frase que ganhou destaque na voz de Carl Sagan: há mais estrelas no céu do que grãos de areia na Terra. Há, ainda, um pulsar quase mudo, abraço de anos-luz, não na poderosa estrela de nêutrons, mas na canção de Caetano: “onde quer que você esteja, em Marte ou Eldorado, abra a janela e veja” que, apesar das distâncias de anos-luz, o amor aqui semeado é o que nos mantém para sempre conectados no propósito da busca pelo desconhecido.

Assista as entrevistas

(Colaborou Roger Marzochi)