Computação quântica, entrelaçamento quântico, superposição. Isso tudo vem com frequência à mente quando se pensa em Mecânica Quântica, especialmente neste ano no qual a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e as Nações Unidas (ONU) proclamaram 2025 como o Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas (IYQ 2025). Mas os avanços nos estudos que foram consolidados em 1925 que marcaram definitivamente a física quântica proporcionaram a grande revolução que vivemos hoje, presente em todos os aparelhos eletrônicos que usados no dia-a-dia, como computadores, celulares, entre outros.

O futuro será moldado pelos fenômenos quânticos do entrelaçamento e da superposição. Mas, enquanto isso não ocorre, os aparelhos eletrônicos que usamos hoje, também estão em evolução na chamada spintrônica, uma área da física e da tecnologia que explora não só a carga elétrica dos elétrons (como na eletrônica tradicional), mas também o spin: uma propriedade quântica relacionada ao magnetismo. Um grupo de cientistas brasileiros publicou, em 30 de março, na revista Nature Communications o artigo Disentangling edge and bulk spin-to-charge interconversion in MoS2 monolayer flakes, que representa um grande avanço dessa tecnologia.

A essência da eletrônica está nas correntes elétricas, ou seja, no movimento de elétrons através de circuitos. Contudo, essa mesma corrente é também um dos grandes vilões da eletrônica atual, pois o fluxo de elétrons nos materiais gera aquecimento, o conhecido efeito Joule. Para se ter uma ideia, apenas no universo da computação em nuvem, os datacenters ao redor do mundo já consomem cerca de 1% de toda a energia elétrica utilizada globalmente. E olha que isso pode ser ainda pior, com os avanços e popularização da inteligência Artificial (IA). Portanto, é premente a mudança do paradigma da maneira de como processamos informação. Mas o que tem a ver o elétron com a mecânica quântica?

A busca de se conhecer a intimidade da matéria direcionou a humanidade para estudos que, por exemplo, teorizaram sobre a existência dessa partícula de carga negativa que se comporta de forma quântica em seus giros, voltas ou suas mágicas aparições “do nada” em sua dança com o átomo. A pergunta sobre o que é realmente o elétron, aliás, continua em aberto.

O professor Mário Schenberg (1914-1990) dizia a seus alunos na Universidade de São Paulo (USP), inclusive, que era preciso “amar o elétron”, segundo o físico Ademir Santana, da Universidade de Brasília (UnB), em reportagem publicada no Boletim SBF. A ideia era instigar a curiosidade e o interesse pelo método científico, que não é um veredito final sobre o que vemos ao olhar o mundo, mas sim uma busca constante por respostas. “Com a abordagem baseada na metodologia científica não é possível dizer em definitivo o que é o elétron, mas podemos ir em sua direção com o método que temos, sem ambiguidade. Isso é um dos significados da fala do Professor Schenberg sobre o elétron”, explica Santana.

Após essa partícula ser identificada em 1897 por J. J. Thomson, décadas depois, surgiu uma hipótese ainda mais curiosa: a de que o elétron teria um momento angular intrínseco, ou seja, ele gira sobre si mesmo enquanto corteja o átomo, um fenômeno chamado “spin”. Essa ideia nasceu exatamente em 1925, no contexto das grandes descobertas da física quântica, um conceito proposto por dois físicos holandeses: George Uhlenbeck e Samuel Goudsmit. Leia mais detalhes em “Uma breve história do mundo dos quanta”, texto de Érica Polycarpo e Marta F. Barroso do CEDERJ.

De lá para cá, a Física avançou a ponto de não apenas detectar esse comportamento quântico, mas também manipulá-lo. “Podemos dizer que o ímã mais fundamental que a gente conhece é o elétron, porque seu spin faz dele um tipo de um pequeno ímã. E a forma como esse ímã se organiza e como ele se propaga no material é possível de ser manipulada”, explica o professor Flávio Garcia, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), que assina o artigo publicado na Nature Communications junto a outros colegas do centro, como o cientista Luiz Sampaio.

Ao manipular adequadamente o spin do elétron cria-se uma “corrente de spin”. Esta nova corrente, que não mais “elétrica”, mas sim “magnética”, é o fenômeno chave por trás da spintrônica. As “correntes de spin” têm como grande vantagem o fato de não ser necessário existir qualquer movimento dos elétrons através de circuitos, como é na eletrônica atual. Com isso, eliminaríamos o indesejado efeito Joule.

O trabalho nasceu há sete anos e foi o tema da tese de doutorado no CBPF de Rodrigo Torrão Victor, há um ano está fazendo pós-doutorado na França, no Laboratoire Albert Fert (Université Paris-Saclay/Centre national de la recherche scientifique – CNRS/Thales). Rodrigo assina o paper, com a participação de Syed Hamza Safeer (CBPF), John F. R. Marroquin (UnB), Jorlandio F. Felix (UnB), Márcio Costa (Universidade Federal Fluminense – UFF) e Victor Carozo (PUC-Rio).  

Os físicos já sabiam que essa corrente de spin pode ser convertida em corrente de carga, contudo, os mecanismos microscópios envolvidos neste processo são motivos de intensos debates na comunidade de spintrônica. A grande inovação desta equipe de pesquisadores foi demonstrar, por meio de experimentos e modelagem teórica, todos realizados em laboratórios brasileiros, a possibilidade de manipular com alta precisão a corrente de spin e convertê-la em corrente de carga, simplesmente ao iluminar com luz violeta flocos triangulares de monocamadas de dissulfeto de molibdênio (MoS₂), um material bidimensional pertencente à família dos dicalcogenetos de metais de transição (TMDs).

Há sete anos, ainda durante o mestrado de Rodrigo no CBPF, iniciou-se o processo de sintetizar camadas de granadas de ítrio ferro (YIG), um material magnético e isolante, a ponto de apresentar as propriedades magnéticas necessárias ao experimento. Logo após, o cientista começou a pensar em outros materiais para acoplar essa granada de ferro e itírio, a fim de estudar como gerar e manipular essas correntes de spin. “Começamos a estudar uma combinação de materiais”, diz Rodrigo. Por sua vez, Hamza Safeer fez crescer o MoS₂ em um processo no qual o material fica disposto em formato triangular. “E nessa intenção de estudar esses dois materiais acoplados (YIG e MoS₂), a gente começou a colaboração, tanto com o Victor, da PUC-Rio, quanto com o Jorlandio, da UnB, e seus respectivos alunos, para crescer esses materiais bidimensionais sobre a granada”, explica Rodrigo. Para completar o trabalho, Marcio Costa elaborou as modelagens teórica do experimento. Por fim, o estudo investigou heteroestruturas compostas por uma camada YIG em contato com os flocos de triangulares de MoS₂.

O formato de MoS₂ em triangulo foi interessante ao estudo, explica Flávio Garcia, pois seu interior apresenta propriedades eletrônicas distintas em comparação com suas bordas. “As extremidades do triângulo são enxofre com uma organização específica, o que no jargão a gente chama de terminação tipo ‘zig-zag’. Isso confere ao material uma propriedade muito interessante. Normalmente, ele é um semicondutor. Só que se você pensa no triângulo, nas bordas do triângulo, ele tem um caráter condutor, ele tem um caráter metálico. Ele funciona como um fio, como um fio condutor”, diz Garcia.

Spin pumping (αSP) dependence as a function of the: (a) total edge length (PTotal), (b) total MoS2 area (ATotal), and (e) total MoS2 area divided by the total perimeter (ATotal/PTotal). The normalization on the (e) x-axis is based on the fact that the metallic edge states are proportional to the perimeter multiplied by the width of the metallic edge states, resulting in an adimensional unit. The highlighted samples S1 to S4 were selected for studying the light influence in the SP. Illustrations of the YIG/MoS2 heterostructures with small (red region) and larger flakes (blue region) are shown in (c) and (d), respectively. Representative scanning electron microscopy of MoS2 flakes with small ATotal/PTotal ratio is shown in (f) with a scale bar of 2 µm and with higher ATotal/PTotal ratio in (g) with a scale bar of 100 µm.

Utilizando a técnica de bombeamento de spin, os pesquisadores analisaram a contribuição de cada uma dessas fases, a metálica, relacionada às bordas dos triângulos, e a semicondutora relacionada aos seus centros, no processo de transferência de momento angular entre a camada de YIG e os triângulos de MoS2 e como a proporção de cada uma importância de cada uma dessas fases pode ser modulada com a luz. Essa transferência gera uma corrente de spin, que pode ser posteriormente convertida em corrente elétrica, que é base para aplicações em dispositivos optoeletrônicos de baixo consumo energético. “Uma das coisas que a gente tem que destacar nesse trabalho é a proximidade com a possibilidade da utilização do que foi obtido nessa pesquisa para aplicação já próxima em dispositivos, em celulares, em computadores e de fato gerar alguma alteração no que a gente tem de tecnologia”, explica Rodrigo.

“A grande descoberta do nosso trabalho, na minha opinião, foi a gente conseguir separar as contribuições e o porquê existe esse efeito spintrônico tanto na fase semicondutor como na fase metálica, e fazer um ajuste fino de como ajustar a contribuição semicondutora e a contribuição metálica usando luz”, explica Garcia. Por meio de um comprimento de onda bem específico e modulando a intensidade dessa luz, “a gente consegue modular essas duas contribuições”. “Modulando essas duas contribuições, a gente consegue aumentar o efeito spintrônico observado, aumentando-o, diminuindo, e até mesmo zerando esse efeito. Esse foi todo o achado deste paper.”

Concorda com Garcia, Luiz Sampaio, que desenvolve no CBPF “pesquisa em matéria condensada experimental e teórica com ênfase no estudo de propriedades de transporte elétrico e térmico dependente de spin, e de propriedades magnéticas e magneto-ópticas em filmes finos, sistemas bidimensionais e nanoestruturados”, e integra o INCT de Spintrônica. “Diferentemente de muitos trabalhos feitos em sistemas bidimensionais, neste nosso paper a gente mostrou que a borda, no caso dos triângulos, tem um papel superimportante para o efeito final que é observado. Isso trouxe um novo olhar para os sistemas bidimensionais”, afirma o cientista. E que esse novo olhar, assim como as cores das luzes da natureza, possa contribuir com seus brilhos não só para otimizar a atual eletrônica, mas espalhar o conhecimento científico nos laboratórios no Brasil e no exterior.

Assista a entrevista na íntegra

(Colaborou Roger Marzochi)