As perovskitas halogenadas, que são cristais que vêm transformando a eletrônica e a energia solar, acabam de revelar um segredo guardado em sua estrutura atômica. Um grupo internacional de cientistas, entre eles o químico brasileiro Marcos Calegari Andrade, professor assistente da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, descobriu que esses materiais podem formar padrões espontâneos de polarização que se comportam como “paredes invisíveis”, capazes de separar elétrons e lacunas e prolongar o tempo em que a luz e a eletricidade convivem. O trabalho foi publicado em 24 de setembro de 2025 na revista Physical Review Letters com o título “Carrier Localization and Spontaneous Formation of Two-Dimensional Polarization Domain in Halide Perovskites.

As perovskitas halogenadas são materiais híbridos compostos por elementos como chumbo, césio e bromo, organizados em uma rede cúbica que lembra um mosaico tridimensional. Essa estrutura é o que lhes confere propriedades excepcionais: elas são ótimas em capturar e emitir luz. Por isso, vêm sendo testadas em painéis solares, LEDs, detectores e células fotovoltaicas de nova geração. “É de extremo interesse que esses materiais tenham alta mobilidade dos portadores de carga. O mecanismo proposto pelo nosso trabalho pode, portanto, contribuir para o desenvolvimento de materiais optoeletrônicos mais eficientes”, afirma Andrade, em entrevista por e-mail ao Boletim SBF.

Marcos Calegari Andrade, professor assistente da Universidade da Califórnia em Santa Cruz.

Mas havia um mistério: por que as perovskitas mantêm elétrons e lacunas separados por tanto tempo, sem que se recombinem rapidamente, o que seria esperado em materiais comuns? Essa “pausa” entre cargas elétricas é o que torna as perovskitas tão eficientes, mas até agora o mecanismo exato por trás desse fenômeno era uma espécie de nota fora da “partitura científica”.

Uma “orquestra” de elétrons e íons

Para resolver esse enigma, os pesquisadores simularam a dança dos átomos, elétrons e fônons (as vibrações da rede cristalina) de uma perovskita modelo, o CsPbBr₃, em escalas de dezenas de nanômetros. Eles usaram uma abordagem computacional chamada dinâmica não adiabática ab initio com acoplamento tight-binding, que permite observar como elétrons e íons interagem em tempo real, como músicos improvisando juntos.

“As nossas simulações indicam que a formação de domínios de polarização em CsPbBr₃ favorecem a localização de elétrons e lacunas em extremidades opostas desse domínio. O exciton formado pelo foto-excitação do material, portanto, seria estabilizado pela separação de carga nestes domínios, contribuindo assim a um maior tempo de recombinação de portadores de carga”, diz Andrade. “Simulações computacionais de matéria condensada atravessam com frequência as fronteiras de química e física, sejam elas simulações com base em teoria clássica ou quântica. O nosso trabalho, em específico, estuda um material relevante para as duas ciências usando técnicas que tanto físicos quanto químicos teóricos utilizam em sua pesquisa. Além disso, usamos tanto mecânica clássica (dinâmica dos íons) quanto quântica (dinâmica dos charge carriers) nas nossas simulações”, explica ele, sobre como este artigo é um exemplo de como as fronteiras entre química e física se dissolvem quando se trata de entender a matéria em nível quântico.

A metodologia da equipe de pesquisa foi essencial porque, nos materiais reais, a estrutura atômica vibra constantemente. Os elétrons não se movem em um palco estático, eles precisam seguir o ritmo imposto pelos fônons. Entender como essa coreografia acontece é fundamental para explicar o que dá às perovskitas sua notável performance em dispositivos optoeletrônicos.

O estudo revelou que, em temperaturas abaixo de 100 kelvins (ou -173 °C), as perovskitas passam por uma transformação. Mesmo sendo, em princípio, materiais não polares, elas formam espontaneamente grãos de polarização local, regiões em que os átomos se alinham de modo desigual, criando domínios elétricos bidimensionais. Esses domínios funcionam como “paredes de energia”, capazes de reter elétrons de um lado e lacunas do outro, evitando que se encontrem e recombinem. É como se o cristal criasse, sozinho, salas “acústicas internas” que impedem que duas notas (a positiva e a negativa) se cancelem. Essa separação natural explica o longo tempo de vida dos portadores de carga, uma das características mais intrigantes e valiosas das perovskitas.

No ritmo dos fônons

Além disso, os cientistas observaram que o transporte elétrico em baixas temperaturas não acontece por um fluxo livre, mas por um mecanismo conhecido como salto assistido por fônons (phonon-assisted variable-range hopping). Nesse processo, os elétrons “pulam” de uma região a outra seguindo o compasso das vibrações da rede cristalina, assim como músicos que só podem mudar de tom quando o ritmo permite. A frequência desses saltos está diretamente relacionada ao espectro de potência dos fônons, que muda com a temperatura, e às oscilações de energia observadas nas simulações. Em outras palavras, é o próprio som interno do cristal (suas vibrações microscópicas) que dita a forma como a eletricidade se move.

Os resultados conectam, pela primeira vez, a formação de domínios de polarização, o acoplamento elétron-fônon e a dinâmica dos portadores de carga, oferecendo uma explicação coerente para o comportamento das perovskitas em baixas temperaturas. Essa ligação entre estrutura e função ajuda a compreender por que as perovskitas continuam funcionando bem mesmo quando imperfeitas, e abre caminho para novos desenhos de materiais optoeletrônicos mais estáveis e eficientes. Ao entender como os elétrons se organizam e se separam naturalmente, os pesquisadores podem “afinar” os parâmetros de síntese desses materiais, como se ajustassem a tensão das cordas de um instrumento.

A descoberta de Andrade e seus colaboradores mostra que as perovskitas são mais do que cristais úteis: são sistemas dinâmicos que, sob determinadas condições, compõem sua própria melodia elétrica. Cada vibração, cada domínio de polarização, é uma nota nessa sinfonia invisível que determina como a luz se transforma em corrente. Para o futuro, a equipe acredita que compreender esse “ritmo interno” pode levar a novos dispositivos que aproveitem o acoplamento entre vibração e eletricidade, como sensores ultrassensíveis e emissores de luz ajustáveis por temperatura. O estudo é um lembrete de que, no mundo quântico, até o silêncio tem som: e que dentro de um cristal aparentemente imóvel pode haver uma orquestra microscópica regendo o brilho que chega aos nossos olhos.

(Colaborou Roger Marzochi)