Dois isótopos ricos em prótons de molibdênio (o ⁸⁴Mo e o ⁸⁶Mo) ajudaram os físicos a redesenhar o mapa das chamadas “Ilhas de Inversão”, regiões raras onde núcleos atômicos deixam de seguir as “regras tradicionais” de organização interna. Com essa pesquisa inovadora, será possível ampliar ainda mais a ciência básica que poderá nos ajudar a melhorar modelos nucleares e entender a abundância de elementos que há na natureza que nasceram, muitas vezes, no coração de estrelas e supernovas.

O tema é apresentado no artigo “Abrupt structural transition in exotic molybdenum isotopes unveils an isospin-symmetric island of inversion”, publicado na revista Nature Communication no dia 27 de novembro, que tem a participação do físico brasileiro Rafael Escudeiro, que colaborou no estudo durante o seu pós-doutorado no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP). Hoje, o jovem físico  atua no Real Instituto de Tecnologia – KTH, na Suécia.

De acordo com o artigo, a descoberta veio das primeiras medições de vida-média dos estados excitados 2⁺ desses isótopos. Os resultados, obtidos com feixes radioativos e detectores de última geração, mostram que ⁸⁴Mo apresenta um comportamento altamente coletivo já em baixo momento angular, enquanto ⁸⁶Mo, com apenas dois nêutrons a mais, grande que parte desse caráter coletivo se perde. O contraste é tão forte que marca a fronteira de uma nova “Ilha de Inversão”.

O pesquisador Rafael Escudeiro, do Real Instituto de Tecnologia – KTH, da Suécia.

“As dificuldades experimentais para acessar estados excitados em núcleos ricos em prótons são tão grandes que esse tipo de comportamento nunca havia sido observado nessa região de massa. Essa observação só se tornou possível agora porque os equipamentos e as técnicas avançaram muito nos últimos anos”, diz Escudeiro, em entrevista a partir da Suécia ao Boletim SBF.

Mas afinal, o que isso significa? Para entender por que isso importa, precisamos dar alguns passos para dentro do núcleo atômico. Assim como as notas de um instrumento devem obedecer a certas posições, prótons e nêutrons ocupam níveis de energia organizados em camadas, e algumas dessas posições são especialmente estáveis, são os conhecidos números mágicos. Para núcleos mais estáveis, essas regras funcionam bem: quando as “notas” (os prótons e nêutrons – ou núcleons) preenchem exatamente essas camadas, o núcleo assume forma esférica e previsível.

No entanto, existem regiões no mapa nuclear onde o núcleo “desobedece” essa lógica. Nessas áreas, chamadas Ilhas de Inversão, o estado fundamental não é o tradicionalmente esperado pelos modelos nucleares, mas sim uma configuração “intrusa”, em que muitos prótons e nêutrons são promovidos para camadas mais elevadas. Isso cria núcleos deformados, altamente coletivos, que vibram e giram de maneira diferente do esperado pelo modelo de camadas nuclear, como se estivessem improvisando livremente uma música. “A transição medida no 84Mo têm vida média da ordem de picossegundos, o que representa um intervalo de tempo de trilionésimos de segundo. Para que possa ser produzido e ter sua vida-média medida, o 84Mo exige equipamentos extremamente eficientes”, explica o físico brasileiro.

Até hoje, essas ilhas eram conhecidas no lado muito rico em nêutrons. E a novidade desse estudo é que esta é uma ilha de inversão que aparece no lado rico em prótons. O estudo mostra que no ⁸⁴Mo (N = Z)  a probabilidade reduzida de transição elétrica quadrupolar, chamada B(E2), é muito alta, um sinal claro de que prótons e nêutrons estão se movendo de forma coletiva e coerente já em baixo momento angular. É como se todos os instrumentos da “orquestra nuclear” estivessem tocando juntos, em uma região onde, segundo o modelo de camadas nuclear, isso não deveria acontecer.

Já ⁸⁶Mo, com apenas dois nêutrons a mais, um comportamento mais ‘tradicional’ é observado, e a “harmonia”, ou altissima coletividade, observada no 84Mo não se faz mais presente: o valor de B(E2) cai drasticamente. Os físicos descrevem isso como uma mudança estrutural abrupta, quase um “desligamento” da coletividade. Os cálculos teóricos indicam que os dois nêutrons extras aumentam a distância entre orbitais importantes, especialmente a lacuna entre g₉/₂ e d₅/₂, enfraquecendo a deformação. 

Outros efeitos  ligados às chamadas forças de três núcleons (3N), também  começam a deixar suas impressões digitais nessa região do mapa nuclear. Com isso, ⁸⁴Mo entra na Ilha de Inversão recém-identificada, enquanto ⁸⁶Mo fica na beira dela, marcando sua fronteira. “Medir apenas a vida média dos estados excitados não basta: é a análise teórica que permite interpretar se o efeito observado vem de forças de três corpos, de orbitais intrusos ou de outros mecanismos estruturais do núcleo”, explica Escudeiro.

Isso é importante por que traz alguns avanços: redesenha o mapa das Ilhas de Inversão, uma vez que agora há evidências claras de uma Ilha de Inversão também no lado rico em prótons, e não apenas no lado rico em nêutrons; mostra que prótons e nêutrons podem formar estruturas intrusas.

Além disso, pode aprimorar os modelos. Há na física nuclear um tipo de tabela periódica, como na química, mas formado por milhares de isótopos. “Modelos nucleares funcionam bem para grande parte dos núcleos estáveis, mas começam a falhar conforme nos aproximamos das regiões extremas do mapa nuclear, próximas à chamada ‘drip line’ de prótons. Nessas zonas, efeitos como deformações acentuadas, cruzamento de orbitais e forças de três corpos tornam-se essenciais para explicar os fenômenos observados”, explica o cientista.

Segundo ele, esse estudo pode colaborar para melhorar modelos nucleares existentes ou ajudar a explicar a abundância de certos elementos na natureza. “Por exemplo, para você conseguir explicar a abundância desses elementos na natureza, você precisa saber o caminho que ele percorreu durante a nucleossíntese. Se, em algum momento dessa formação, nessa cadeia de nucleossíntese, um isótopo viveu mais ou viveu menos do que o previsto pelo modelo, a abundância dos próximos núcleos na cadeia seria afetada”, simplifica o cientista. 

Com o resultado inédito da pesquisa, é possível avançar os modelos nucleares, chegando aos extremos da tabela de nuclídeos. “Esse tipo de resultado mostra também que, nas regiões mais extremas do mapa nuclear, muitas das simplificações adotadas pelos modelos deixam de funcionar. Nesses pontos, os orbitais se reorganizam, a deformação cresce e os efeitos de três corpos se tornam relevantes,  exigindo novos modelos ou a delimitação clara de onde cada modelo é aplicável”, afirma o cientista. Com essa descoberta, a ciência prova que é possível chegar cada vez mais profundo na incrível beleza da natureza, com a participação de um jovem físico brasileiro.

(Colaborou Roger Marzochi)