Criado na década de 1960, o desenho “Vira Lata” foi amplamente retransmitido na década de 1980 na televisão brasileira, exatamente a época de minha infância. No desenho, o cão super-herói muitas vezes enfrenta o vilão Simon Sinistro, um cientista maluco que deseja controlar mentes com máquinas que ele inventa para dominar o mundo, ordenando às pessoas: “Simon diz…”. Não é fácil ser “experiente” na vida, bem sei que há aqueles que lembram ter assistido “O vigilante rodoviário” (1962) ou a incrível “Família Trapo” (1960). É bom não ir mais longe… Nesses últimos 40 anos, a ideia de controlar a mente das pessoas evoluiu não apenas na ficção, mas há sérios riscos na vida real, até mesmo na ciência, uma vez que a Inteligência Artificial (IA) já é aplicada na Física, tanto em experimentos e simulações científicas quanto na produção e revisão de artigos, assim como no ensino.

Enquanto a televisão buscava se formar no Brasil, em 1960, em um laboratório do Massachusetts Institute of Tecnology (MIT), Joseph Wiezenbaum trazia à humanidade o programa Eliza que, guardadas as devidas proporções em relação às  sucessivas evoluções tecnológicas, técnicas e computacionais ocorridas desde então, pode até ser considerada a bisavó da chamada inteligência artificial (IA) generativa que experimentamos hoje, e que, em 2024, rendeu o Prêmio Nobel de Física a John J. Hopfield e Geoffrey E. Hinton. Há quem diga, como o cientista Miguel Nicolelis, que a IA não tem nada de inteligente.

O tema já foi debatido aqui com o físico Osvaldo Novais de Oliveira Junior, professor do Instituto de Física de São Carlos e um dos criadores do Núcleo Interinstitucional de Linguística Computacional (NILC), que essa nova tecnologia promoverá uma revolução científica e cultural. “Não tem a mínima dúvida: é um processo inevitável. Estamos presenciando uma revolução imensa, muito maior do que qualquer outra revolução tecnológica gerada até hoje, porque a máquina já pode realizar tarefas que humanos fazem”, chegou a dizer Oliveira Jr, em entrevista ao Boletim SBF em maio de 2023, antes de sua palestra no Física ao Vivo, no canal do Youtube da SBF. “No caso da física, as revoluções que já estão acontecendo de descobrir novos conhecimentos ou mineração de conhecimento na literatura usando essas ferramentas. É possível gerar novos conhecimentos a partir do que existe”, afirmou.

“Acho que a IA terá um tremendo impacto nas artes, entre outras coisas porque será muito difícil (se não impossível) distinguir uma obra produzida por IA ou por um humano. O conceito de que arte é essencialmente uma atividade humana pode ter que ser alterado. Para um ouvinte de música, apreciador de arte, etc., não fará diferença a origem da obra. Se for agradável será consumida”, afirmou, em entrevista por whatsapp após o FaV, que me inspirou a escrever um texto sobre o impacto da IA na arte, fora da SBF.

Em 2016, grandes empresas começaram a utilizar os chamados chatbots e, em 2023, houve a gigantesca corrida para a IA generativa, alimentando uma competição mundial na qual inclui o Brasil, com o Maritaca AI. Independentemente em discutir as competições e as tecnologias que levam essas máquinas à suposta inteligência, o fato é que, dos bancos escolares do Ensino Médios às mais prestigiadas academias, esses sistemas vêm gerando textos, análises, artigos científicos e, até mesmo, revisões de artigos científicos por “referees” de periódicos.

“Nós precisamos ter um programa de integridade acadêmica nas instituições relacionadas ao uso da IA, especialmente na produção científica, porque está aumentando exponencialmente o número de artigos científicos submetidos às revistas do mundo inteiro”, afirma Luciano Sathler Rosa Guimarães, que tem uma carreira invejável. Ele é PhD em Administração pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), membro do Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais, no qual preside a Comissão Temporária designada para elaborar as normas para a oferta da modalidade de Educação a Distância (EaD), utilização de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) e Inteligência Artificial (IA) na Educação Básica.

Homem de meia-idade, careca de terno escuro, sentado, falando ao microfone.
Luciano Sathler Rosa Guimarães, membro do Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais.

“Está ficando claro que são artigos produzidos parcial ou totalmente com o uso da IA. E muitos desses artigos, inclusive com referências bibliográficas inventadas pela IA, que não existem. E o resultado é que muitos avaliadores de artigos científicos passam a usar a IA para avaliar o artigo”, explica o especialista, que ainda foi membro do Conselho Deliberativo do CNPq (2020-2024); exerceu cargos de liderança educacional, tanto como diretor de escola quanto reitorias em instituições de Ensino Superior; e foi o primeiro pró-reitor de Educação a Distância do Brasil.

O especialista é ainda CEO da CertifikEDU Microcertificações com Blockchain e Inteligência Artificial (www.certifikedu.com.br), pensada para o Ensino Médio, Técnico, Superior e Educação Corporativa. “Nós temos a escrita algorítmica do artigo e nós temos a avaliação algorítmica do artigo. Não tem possibilidade em dar certo”, afirma. “Então o cientista na área de Física precisa estar atento, tanto quando ele lê, e se apropria de pesquisa publicada recentemente, como também na sua própria publicação, para não cair nesses erros mais comuns que afetam a integridade acadêmica.”

A revista Pesquisa Fapesp divulgou na web em junho deste ano uma importante reportagem: “Pesquisadores usam inteligência artificial nas tarefas acadêmicas”. O texto traz dados de uma pesquisa com cerca de cinco mil pesquisadores no mundo, dentre eles, 143 sediados no Brasil, na qual mais da metade considerou “que a tecnologia produz, sim, resultados melhores do que as pessoas em encargos como mapear possíveis colaboradores, gerar resumos ou conteúdos educacionais a partir de artigos científicos, verificar a existência de plágio em textos, preencher referências bibliográficas ou monitorar a publicação de artigos em determinadas áreas”, escreve a jornalista Sarah Schmidt na Edição 352. A pesquisa, da Editora Wiley, revela que 57% já usaram IA como assistente na escrita acadêmica, e 30%, em revisão de estudos publicados.

O risco não se limite apenas à academia. Ao se basear na IA sem que haja uma experiência e um questionamento sobre os resultados apresentados por esses sistemas é possível ser fisgado pelo vilão “Simon diz”, porque esses sistemas necessariamente respondem àquilo que a eles perguntamos. Dependendo da forma como é feita essa pergunta ou o comando de ação, o chamado prompt, o sistema “alucina”, inventa citações e contextos, sendo necessário especial atenção à juventude que, frente à miríade de telas, aplicativos e Ias, acaba usando isso a fim de elaborar redações, projetos de pesquisa e, até mesmo, poemas aos seus amores. “Aja como Fernando Pessoa e escreva um poema inspirado no heterônimo Alberto Caieiro; aja como Matéi Vișniec e escreva uma peça de teatro inspirada em Migrantes…” E então… Zastraz! Eis o texto “pronto”, sem nem mesmo ter tido tempo de sentir na pele “que a vida é jovem e o amor sorri”, nem ter lido no noticiário o drama dos migrantes, ou ter passado pela expulsão de seu país, como sofreu o jornalista e dramaturgo romeno hoje radicado em Paris.

Segundo Sathler, as escolas, do Ensino Médio às universidades, precisam se adaptar à essa realidade, pois se estiverem corrigindo provas como era no século passado, provavelmente estão deixando passar textos escritos por IA. Há estratégias de aprendizagem, como a possibilidade de criação de materiais didáticos usando até filmes criados por IA e instigar os alunos a se apropriarem dessa linguagem nova, sem que isso prejudique o seu desenvolvimento. O especialista avalia ainda que o uso correto da IA poderá levar mais jovens a estudarem física e até a suprir a baixa procura dos cursos de Licenciatura em Física.

“Nós temos já um apagão de professores na área de Física no Brasil, porque boa parte de quem ministra Física no Fundamental 2 e no Ensino Médio não é formado em Física. Nós precisamos formar mais professores, precisamos formar mais pesquisadores e aí passa pela metodologia ativa e a IA pode ser útil nesse sentido”, explica Sathler, que criou a expressão “igualdade artificial”. Se um jornalista (ou físico e física) for muito bom de “prompts”, as tais ordens de “Simon diz…”, é possível escrever um texto informativo, talvez até de divulgação científica, cobrando menos do que cobra um jornalista que assistiu ao desenho animado na década de 1980! Embora precise também saber o que é nota, notícia, reportagem e seus estilos e desapegar da teimosia em negar às pessoas metáforas, como faz brilhantemente Constantino Tsalles. “É um alerta. Se eu sou capaz de fazer algo em jornalismo, que eu não sei nada de jornalismo, mas que convença as pessoas, então o Roger vai ter que aprender a usar bem a IA e, com o conhecimento e experiência que o Roger tem, ele vai criar coisas que eu não serei capaz de criar com nenhuma IA.”

O problema da IA também não se restringe apenas ao embate entre Norte Global e Sul Global. A Maritaca IA, por exemplo, foi faladeira como suas amigas de pena ao questionar uma ideia que compartilhei com ela em relacionar de forma lúdica uma cena do filme australiano “O Jovem Einstein” (1988) a uma certa matéria que estava escrevendo sobre física. Para a IA brazuca, esse filme prejudica a imagem da ciência e de sua metodologia, como se a ciência se fizesse de dogmas. Apesar de não ser tão engraçado, esse filme, à época de minha adolescência, me fez pensar sobre qual relação haveria entre a formação de bolhas no chopp, que, satiricamente, o filme atribuía a uma invenção de Albert Einstein, e a bomba atômica, que era a única coisa que eu conhecia, à época, sobre o físico alemão.

“A relação do filme com a ciência é puramente cômica e satírica. Ele utiliza conceitos científicos de forma leve e distorcida para criar humor. A ideia de que Einstein inventa a cerveja espumante é uma sátira direta que zomba da ideia de grandes descobertas científicas, sugerindo que até mesmo um dos maiores cientistas poderia tropeçar em descobertas por acidente”, tagarela nossa ave eletrônica. “Quanto à cerveja, o filme brinca com o processo de fermentação e a ciência por trás da produção de cerveja, sugerindo que Einstein, por meio de suas experiências, poderia ter descoberto um método para criar uma cerveja espumante, o que é uma fantasia cômica e não tem relação com os feitos científicos reais de Einstein. Em suma, O Jovem Einstein é uma comédia que desvia muito da realidade histórica e científica. O filme usa o nome de Einstein e conceitos científicos para criar humor e entretenimento, sem qualquer pretensão de ser uma representação séria da ciência ou da vida do físico alemão.”

A máquina, independentemente do País em que foi criada, não entende que o humor é capaz de alcançar ainda mais pessoas, instigando em alguns curiosidades que podem levar ao questionamento do qual tanto se preza na ciência: a curiosidade. Os desafios da IA são imensos, na mesma grandeza de seus benefícios, mas corremos o risco de nosso “tico e teco” se encantarem com a voz que ordena: “Simon diz…”. E lembre-se que, independentemente da sua profissão, podemos atribuir à IA o mesmo simbolismo ao qual Chico Sales, São Francisco de Sales, usou para se referir ao “jornal”. Para ele, o jornal é “indiferente para o bem o para o mal, façamos que siga no melhor caminho”. Talvez não adiante você pesquisar a referência na web, pois ela está num santinho que peguei no sindicato em 1997 quando tirei o registro profissional, que me acompanha em minha carteira desde então, já desgastada pelo tempo.

(Colaborou Roger Marzochi)