Quando Pablo Picasso desenhou a série litográfica Le Taureau (“O Touro”), em 1945, ele não estava pensando em Isaac Newton ou Albert Einstein, tampouco em física. Ainda assim, a arte criada por camadas sucessivas de simplificação gráfica guarda uma conexão direta com o que a ciência busca ao explicar o mundo: retirar os excessos, focar no essencial, criar modelos, traçar formas de compreensão. Do touro musculoso, cheio de detalhes anatômicos, o artista espanhol chegou a uma figura quase simbólica, feita de traços mínimos, mas ainda assim reconhecível.

“A ciência, de certa maneira, funciona assim também”, afirma o físico Ildeu de Castro Moreira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ao buscar na série de Picasso uma metáfora para o método científico e a divulgação científica. “Você simplifica muito para poder fazer seus modelos de física… o Universo, na realidade, é muito mais complicado, mas isto te dá um poder muito grande de analisar e explicar fenômenos.”

Professor Ildeu Moreira (UFRJ). (Foto: Pietro-Sitchin/SBPC)

Por sua capacidade rara de traduzir a complexidade do mundo físico ao grande público, Ildeu recebeu da Sociedade Brasileira de Física (SBF) o Prêmio Ernesto Hamburger de Divulgação Científica, edição 2025. Trata-se de um reconhecimento simbólico e, ao mesmo tempo concreto, de décadas de atuação na promoção da ciência, da história da física e da educação científica no Brasil.

“Eu fiquei muito honrado de receber esse prêmio, porque eu trabalho com divulgação científica há décadas”, disse o professor ao Boletim SBF. “Fiz, por exemplo, muitos artigos e materiais sobre a ciência, a física e suas histórias, organizei eventos e exposições científicas, vídeos, ajudei em carnavais com temas de ciência… E ganhar esse prêmio com o nome do Ernesto Hamburger é uma satisfação dupla, por ser da SBF e porque eu era amigo dele. Ele era uma pessoa fantástica que fez muito pela ciência brasileira e pela educação em ciências.”

Ildeu esteve à frente de diversas iniciativas de popularização científica em instituições como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o Ministério da Ciência e Tecnologia, e dentro da própria UFRJ. Em 2005, foi um dos responsáveis pela coordenação nacional do Ano Mundial da Física, promovido pela ONU em homenagem ao centenário dos trabalhos revolucionários de Einstein. Coordenou a Semana Nacional de C&T entre 2004, quando foi criada, e 2012.

Recentemente, em 2024, ajudou a montar a exposição “César Lattes e Johanna Döbereiner – Centenários”, exibida no Congresso Nacional. Também contribuiu com exposições sobre o físico Leite Lopes e está participando da organização de um número especial da revista Ciência e Cultura dedicado ao Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas , em parceria com Antônio Augusto Passos Videira, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Além disso, Ildeu foi do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Ensino de Física e continua ativo na Física na Escola, publicações mantidas pela SBF. “A ciência e a física brasileira têm histórias importantes de serem divulgadas e é preciso fazê-lo, destaca. Ildeu sempre acreditou que a educação científica se dá não apenas nas salas de aula, mas nos espaços públicos, nas praças, nos vídeos, nos jornais, nas manifestações artísticas e agora nas redes sociais. Um de seus orientandos, por exemplo, está estudando a divulgação de conteúdos de física em plataformas como TikTok e Instagram. “Tem alguns vídeos que são muito legais, muito imaginativos e passam coisas boas. Outros são furados, porque no afã de simplificar demais, acabam rasteiros e frequentemente errados. A divulgação científica tem que ter qualidade, interessar as pessoas, mostrar que é bonito, importante, mas com informações e interpretações corretas.”

Durante a conversa, o professor voltou ao exemplo de um experimento simples, mas revelador: o movimento de uma folha de papel ao cair. “Se ela está embolada, vira uma espécie de bolinha, como uma partícula, e você consegue calcular o tempo de queda, a trajetória, etc. Mas se a folha está aberta, não dá para saber direito onde ela vai cair. Ela dança no ar, gira, se dobra. É um sistema bem complexo, cheio de variáveis. Isso mostra também as limitações e dificuldades de uma descrição científica acurada, mesmo de problemas cotidianos.”

Essa complexidade, e muitas vezes imprevisibilidade, dos fenômenos da natureza, segundo Ildeu, torna o trabalho do cientista fascinante e também desafiador para quem tenta explicá-lo ao público. “Os fenômenos da natureza são complexos, e a física trabalha muito com sistemas idealizados para poder entendê-los. É como o desenho do touro de Picasso: você vai simplificando, retirando os detalhes, mas ainda é um touro. O desafio está em não simplificar tanto a ponto de perder o que é essencial.”

A escolha de seu nome para o prêmio da SBF, batizado em homenagem ao físico e educador Ernesto Hamburger, um dos maiores defensores da popularização da ciência no Brasil, também simboliza a união entre ciência, arte e educação popular. Ernesto, aliás, era pai do cineasta Cao Hamburger, criador da série Castelo Rá-Tim-Bum, da TV Cultura, que popularizou a ciência para toda uma geração de brasileiros.

Ildeu lembra com carinho da amizade com Ernesto e Amélia Hamburger, companheiros de vida e de lutas. “Eles foram duas pessoas muito, muito legais e importantes para a física brasileira. O filme ‘O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias’, que o Cao fez, é uma homenagem a eles, que foram presos durante a ditadura. É uma história de resistência e de afeto.”

Em tempos em que a ciência volta a ser desafiada por negacionismos e desinformação, o trabalho de Ildeu de Castro Moreira ganha ainda mais relevância. Como o touro de Picasso, ele continua nos lembrando que por trás de cada traço simples há um mundo de complexidade.

(Colaborou Roger Marzochi)