A Organização das Nações Unidas proclamou 2025 como o Ano Internacional da Ciência e das Tecnologias Quânticas (IYQ), sobre as quais pairam as mais diferentes visões de mundo, apesar de os cálculos serem até aqui promissores. A questão é que, para avançar no conhecimento sobre aquilo que não podemos ver diretamente, questões filosóficas surgem entre os cientistas. Por isso, a revista Nature publicou uma pesquisa que dá mostras, de forma inédita, como ainda há controvérsias sobre o que a mecânica quântica representa.
A pesquisa entrevistou mais de 1.100 cientistas, a maioria físicos e físicas, que responderam questões fundamentais da teoria quântica e suas interpretações. E os resultados apontam para uma fragmentação conceitual, que parece existir há cem anos ou até mais, visto que nem mesmo há consenso sobre o centenário. Os dados na íntegra estão na reportagem “Physicists disagree wildly on what quantum mechanics says about reality, Nature survey shows”, publicada pela revista Nature no dia 30 de julho em seu web site e assinada pela repórter sênior de física do periódico Elizabeth Gibney.
Apesar de a interpretação de Copenhague ainda ser a mais popular, especialmente entre os físicos experimentais, uma parcela significativa da comunidade se divide entre posições realistas, epistemológicas e até mesmo radicais, como os “muitos mundos”. A reportagem da Nature explica que essa interpretação foi baseada numa equação criada por Erwin Schrödinger, em 1926, que descreve a “função de onda”.
“A função de onda descreve o estado quântico como uma nuvem de probabilidades. Enquanto não é observada, uma partícula se comporta como uma onda, interferindo consigo mesma e com outras partículas, podendo estar em uma superposição de estados, como se estivesse em vários lugares ou tivesse múltiplos valores ao mesmo tempo. Mas, ao se medir suas propriedades, esse estado nebuloso colapsa para um único valor definido, o chamado “colapso da função de onda”, explica a revista científica.

Para alguns, a função de onda descreve algo real. Para outros, é apenas uma ferramenta matemática. Há ainda quem a veja como reflexo do conhecimento subjetivo do observador. As discordâncias atingem até mesmo os laureados com o Nobel como Anton Zeilinger e Alain Aspect, que participaram do evento de centenário da teoria em Helgoland, na Alemanha.
Para o físico brasileiro Marcelo Terra Cunha, professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e coordenador da Comissão de Ciência e Tecnologias de Informação Quântica da Sociedade Brasileira de Física (SBF), a mecânica quântica não apenas resiste a interpretações únicas, mas desafia a própria noção de realidade. “Eu seria até mais radical: a Teoria Quântica nos obriga até a pôr em xeque a noção de realidade”, afirma, em entrevista por e-mail ao Boletim SBF.
Segundo ele, diferentemente da Teoria da Relatividade, que surgiu de princípios bem definidos, a teoria quântica nasceu de tentativas de resolver problemas como a estabilidade da matéria. “Estamos agora celebrando seu centenário, mas mesmo em relação a esse centenário, não há acordo completo na comunidade”, explica ele.
Marcelo lembra que nas décadas de 1910 e 1920 já se estabeleciam regras operacionais que geram previsões extremamente precisas. O desconforto, segundo ele, vem de mentes moldadas por concepções clássicas. “Mas não temos mais que isso e mentes clássicas se sentem muito desconfortáveis com isso.”
Para além do incômodo, há também limitações reais impostas pela própria teoria. “Resultados como o Teorema de Bell mostram que os conceitos clássicos como trajetórias com posição e momentum perfeitamente definidos contradizem a Teoria Quântica. Mais que isso, os experimentos do tipo Violação de Desigualdades de Bell reforçam que esses modelos clássicos para uma suposta realidade são autocontraditórios. Ainda não há consenso sobre como resolver tal contradição. Portanto, há espaço para ‘opiniões’ muito díspares sobre como resolver esse impasse”, explica.
Mesmo assim, a prática científica no dia-a-dia segue seu curso, mas não sem impactos. “Como o ‘fazer ciência’ envolve muitas etapas complementares, sim, há impacto em algumas delas. Porém, isso não impacta diretamente no dia-a-dia da maioria das pessoas envolvidas com o fazer científico”, diz.
Para Marcelo, é possível aplicar a teoria quântica e obter previsões confiáveis sem entrar no mérito de sua interpretação. “Tipicamente, os resultados obtidos não dependem de interpretação. Apenas quando vamos falar sobre eles é que, consciente ou inconscientemente, costumamos tomar algumas posições ou usar algumas expressões que vão além daquilo que a teoria realmente nos diz.” Isso afeta, principalmente, a escolha dos problemas a serem estudados e a forma de apresentar os resultados.
Entre os destaques da pesquisa da Nature, está o crescimento das chamadas interpretações epistêmicas, que entendem a teoria quântica como uma ferramenta para organizar e prever informações, sem se comprometer com a descrição de uma realidade objetiva. Para Marcelo, essas interpretações não limitam a ciência, pelo contrário. “Na minha opinião, amplia muito. Essas abordagens epistêmicas corrigem uma espécie de ‘overshooting’ da revolução copernicana. Uma coisa é tirar o ser humano do centro do universo (epistêmico). Outra coisa é pensar que sem seres humanos a física deveria ser a mesma.”
Ele enfatiza que física não é sinônimo de realidade, mas uma forma de previsão de resultados experimentais. “Vista dessa forma, se retirarmos todos os seres humanos da conversa, quem vai continuar conversando? Se não há ninguém com interesse em saber as probabilidades de cada resultado possível para tal medição, que previsão resta ser feita usando a Teoria Quântica?”, questiona o físico. “Muito me agrada o lembrete/recado das interpretações epistêmicas que sem a inclusão de ‘agentes’ (aqueles que usam a teoria quântica para fazer predições), não há uso nem da teoria quântica, nem de seus entes”, diz.
Entre as interpretações que se distanciam de Copenhague estão os “muitos mundos”, propostos por Hugh Everett nos anos 1950, e a mecânica bohmiana: esta, que explica os efeitos de interferência e “resgata o determinismo, a ideia de que as partículas têm propriedades definidas antes da medição”, segundo a Nature, foi escolhida como opção por 7% dos entrevistados; aquela, preferida por 15% dos participantes, avalia que a função de onda é real, e o colapso nunca ocorre de fato pois “o universo se ramifica a cada possível resultado de uma medição”, explica Nature.
Marcelo explica que são abordagens bastante distintas. “Muitos mundos é uma maneira de se trabalhar dentro do formalismo quântico evitando fazer o corte entre medição com resultado clássico e a evolução de sistemas físicos isolados. De certa forma, todos os resultados possíveis ‘acontecem’, em ramos diferentes, daí o nome que se costuma usar para tal interpretação.”
Já sobre a mecânica bohmiana, Marcelo avalia que “foi uma forma de resgatar para a Mecânica Quântica o conceito de determinismo”. Para ele, a versão Bohmiana, sobre essa primeira solução (a da propagação da “onda”) “serve também para definir trajetórias que associam a posição inicial de um corpúsculo (não verificável, pois isso mudaria a própria função de onda) com sua posição futura, que seria revelada em uma medição de posição no instante t”. “Nesse sentido, é comum dizer que a teoria bohmiana permite a ‘retrodicção’ da posição da partícula no instante inicial”, explica.
Mas o que justifica o esforço de compreender todas essas interpretações se a teoria funciona bem sem elas? Para Marcelo, essa busca é parte essencial da ciência. “Queremos, o tempo todo, empurrar um pouco mais a interessante fronteira entre o conhecido e o desconhecido. Assim, haver discordância com relação ao ‘verdadeiro’ significado de uma teoria, ou de seus ingredientes, é um estímulo para melhorarmos tal compreensão. Ainda há novidades a serem entendidas ali.”
Além disso, o professor da Unicamp lembra que, com relação a estudantes, “a divulgação/popularização e ao ensino de teoria quântica, considero que um dos aspectos mais importantes é fazer essa separação do que é ‘a teoria por si só’, ou ainda, ‘até onde todo mundo concorda’, daquilo que podemos chamar de interpretações, ou seja, da parte onde opiniões ou posicionamentos filosóficos começam a ter impacto”.
Ele destaca ainda a importância de separar o que é a teoria em si, com sua base consensual, daquilo que pertence ao campo das interpretações. “Não é fácil separar essas coisas, até mesmo porque muitas pessoas acabam diretamente impactadas pelas posturas de quem lhe ensinou, seja falando, seja escrevendo. Mas é um desafio que devemos encarar.” No Ano Internacional da Ciência Quântica, esse é um debate salutar para o desenvolvimento do conhecimento.
(Colaborou Roger Marzochi)