Um estudo realizado no Brasil, com colaboração de pesquisadores internacionais, foi publicado em 1º de outubro na Physical Review Letters. A pesquisa resolve um problema crítico da física médica e da astrofísica: como os prótons perdem energia ao atravessar diferentes fases da água, como o estado líquido e o gelo amorfo. A resposta mostrou que, do ponto de vista físico, a desaceleração dos prótons ocorre de forma equivalente em ambas as fases. Isso tem implicações diretas em tratamentos de câncer por feixes de prótons e na compreensão de reações químicas em ambientes extraterrestres.

O artigo Stopping Cross Sections for Protons Across Different Phases of Water é assinado pelos pesquisadores brasileiros Flávio Matias da Silva, Julian Marco Barbosa Shorto, Hélio Yoriyaz e Júlio José Nogueira Pereira (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares – IPEN/CNEN-SP), Tiago Fiorini da Silva e Manfredo Harri Tabacniks (Instituto de Física da Universidade de São Paulo – IFUSP), e Pedro Luis Grande (Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS). “Estamos há vários anos desenvolvendo métodos para o cálculo da perda de energia em diferentes materiais. A água é, talvez, o mais importante entre eles, por diversas razões,  em especial devido ao crescimento vertiginoso da protonterapia em todo o mundo. A diferença na perda de energia entre as fases da água é pequena, e cálculos totalmente ab-initio ainda enfrentam limitações de acurácia quando aplicados a materiais não cristalinos”, explicam Pedro Luis Grande e Flávio Matias, o primeiro autor do estudo. O trabalho contou com apoio financeiro brasileiro por meio do IPEN, CNPq, FAPESP e CAPES, e envolveu pesquisadores de instituições no Brasil, Espanha, e Austrália.

A terapia por prótons é considerada uma das técnicas mais avançadas no combate a tumores, pois permite concentrar a maior parte da energia no local do câncer com mínima agressão aos tecidos saudáveis. Esse efeito ocorre devido ao chamado pico de Bragg, um ponto da trajetória do próton em que ele perde quase toda a sua energia de forma concentrada. “Isto permitirá experimentos mais acurados de perda de energia. Essa equivalência reduz incertezas na determinação do alcance dos prótons, que é o principal parâmetro de controle da dose depositada no tumor. Com isso, é possível aumentar a precisão na entrega da dose terapêutica, minimizando a exposição dos tecidos sadios adjacentes e melhorando a eficácia e a segurança do tratamento”, dizem os cientistas.

Para que o feixe seja ajustado com precisão milimétrica no corpo do paciente, é essencial conhecer com exatidão a taxa de perda de energia dos prótons ao interagir com a água líquida, já que o corpo humano é predominantemente composto por esse composto. “A compreensão mais detalhada da interação dos prótons com a água pode, no futuro, permitir ajustes mais precisos e individualizados do pico de Bragg em cada paciente. Isso significa que a profundidade exata em que a dose máxima é depositada poderá ser determinada com maior segurança, mesmo em tumores localizados em regiões profundas ou próximas a órgãos sensíveis. Porém, isso é somente parte do problema, pois existem outros fatores que também influenciam o alcance do próton no tecido humano.”

Medidas experimentais com água líquida são difíceis, pois ela é volátil e instável em ambientes de vácuo. Por isso, a maioria dos dados disponíveis foi obtida em experimentos com água no estado sólido (gelo) ou gasoso. As teorias disponíveis também apresentavam limitações para prever a perda de energia em baixas energias de prótons, principalmente na região do máximo de frenagem, justamente a mais importante para aplicações médicas.

Para superar essa lacuna, os pesquisadores combinaram a teoria do funcional da densidade dependente do tempo (TDDFT), que descreve com precisão a interação entre partículas carregadas e sistemas eletrônicos complexos, com o método de Penn, que aproxima a estrutura eletrônica dos materiais por meio de funções de perda de energia. Essa abordagem, batizada de TDDFT-Penn, é não perturbativa, mais eficiente computacionalmente e capaz de reproduzir com exatidão o comportamento dos prótons em diferentes faixas de energia, incluindo a região crítica abaixo de 0,2 MeV.

“A vantagem da metodologia TDDFT-Penn é que ela pode ser facilmente estendida a outros materiais biológicos, bastando uma medida simples de suas propriedades eletrônicas por meio de técnicas como EELS, realizadas em microscópios eletrônicos avançados, por exemplo. Isso abre a possibilidade de realizar estudos ab initio da interação da radiação com componentes específicos dos tecidos — como proteínas, lipídios e ácidos nucleicos, aproximando as simulações das condições reais do corpo humano”

A equipe estudou uma faixa ampla de energias, de 0,001 a 10 MeV, e comparou os resultados com dados experimentais disponíveis. A análise revelou que a taxa de frenagem eletrônica dos prótons — ou seja, o quanto de energia eles perdem por unidade de distância — é praticamente idêntica em água líquida e gelo amorfo. Essa equivalência já havia sido sugerida em estudos recentes sobre elétrons de baixa energia, mas nunca havia sido demonstrada para partículas carregadas mais pesadas, como prótons.

Esse resultado abre um caminho prático importante: como é difícil medir perdas de energia em água líquida, os cientistas agora podem usar gelo amorfo como substituto experimental confiável para obter dados aplicáveis à fase líquida. Isso permite refinar modelos computacionais utilizados em planejamento de radioterapia, reduzindo incertezas na posição do pico de Bragg e aumentando a segurança e eficiência dos tratamentos contra o câncer.

Além do impacto médico, a pesquisa também é relevante para a astrofísica. Gelo de água é abundante em cometas, poeira interestelar e nas superfícies de luas planetárias. Esses ambientes são constantemente bombardeados por prótons do vento solar e raios cósmicos. “Compreender com precisão como os prótons perdem energia no gelo amorfo permite modelar melhor essas reações induzidas por radiação, ajudando a explicar a origem e a evolução de compostos orgânicos complexos no espaço”, escrevem os cientistas brasileiros.

(Colaborou Roger Marzochi)