Há um velho ditado no Nordeste que diz: “Cuidado com o que você diz porque até as pedras ouvem.” Para além da sabedoria popular, não seria de estranhar que, a partir de uma pesquisa de cientistas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), as pedras de repente também começassem a andar. A ideia engraçada e irreal serve para ilustrar uma nova pesquisa publicada na Physical Review Letters (PRL) sobre como um sistema magnético nanométrico possui uma autopropulsão muito parecida com a de microalgas e bactérias. Onde termina a biologia e onde começa a física?
O estudo Emergent Self-Propulsion of Skyrmionic Matter in Synthetic Antiferromagnets foi assinado pelos físicos Clécio C. de Souza Silva e Matheus V. Correa, do Departamento de Física da UFPE, e por Juan Carlos Piña Velasquez, do Núcleo de Tecnologia do Centro Acadêmico do Agreste da UFPE. Eles descrevem teoricamente como um par de skyrmions, estruturas topológicas magnéticas em forma de redemoinho, pode se comportar como um objeto autopropelido, um “nanomotor topológico” capaz de atingir velocidades impressionantes, chegando a até cem milhões de comprimentos corporais por segundo. O trabalho foi publicado em agosto no PRL, como Sugestão do Editor do periódico, e foi tema principal de um Viewpoint na Physics Magazine.
Em fevereiro de 2024, outro estudo publicado no Destaque em Física pela Sociedade Brasileira de Física (SBF) explorava justamente esse aspecto biológico: a quimiotaxia bacteriana. O físico Bernardo de Assunção Mello, da Universidade de Brasília (UnB), aprimorou equações que descrevem como bactérias da espécie Escherichia coli se movimentam em resposta a estímulos químicos. A pesquisa abordava a relação entre receptores, energia dissipada e processos de decisão celular, usando modelos como o de Ising para capturar as redes sensoriais que orientam o deslocamento dos microrganismos.
A comparação entre os dois trabalhos ajuda a entender a convergência de áreas aparentemente distantes. No caso da bactéria, o motor biológico depende de processos químicos, como a hidrólise de ATP, para acionar flagelos e direcionar o movimento. Já no sistema magnético, a energia que gera deslocamento é resultado de interações topológicas e forças girotrópicas não recíprocas. Algo que pode ser imaginado como um pião que, ao ser empurrado para frente, decide andar de lado, ou como dois remadores que, ao remar fora de sincronia, fazem o barco seguir em outra direção. Ambos os tipos de propulsão, porém, compartilham características fundamentais: a capacidade de autopropulsão e a influência do “ruído” da temperatura do ambiente na orientação e na trajetória.
Usain Bolt Magnético
Clécio Clemente de Souza Silva foi graduado, com mestrado e doutorado em Física pela UFPE e atua como professor na universidade desde 2006, atuando principalmente em Física da Matéria Condensada. “Mas, nos últimos dez anos, comecei a ter outros interesses e tenho atuado também em uma área chamada Soft Matter, em que matéria ativa é uma das subáreas. Ficamos muito felizes com essa interseção entre as duas áreas do grupo, a Matéria Condensada e o Soft Matter”, explica o professor em entrevista ao Boletim SBF. Seu orientando de Doutorado, Matheus Valença, que é também “prata da casa”, inspirou a pesquisa atual, pois ele já havia publicado um artigo anteriormente sobre o assunto, mas sem as grandes descobertas ora realizadas.
Segundo Clécio, a semente do artigo nasceu desse estudo anterior. “Era um trabalho para tentar entender como skyrmions antiferromagnéticos se movem em um material antiferromagnético sintético. Esses materiais são de grande interesse atualmente porque os skyrmions atingem velocidades absurdas, já comprovados experimentalmente. O recorde de velocidade de skyrmions é nesse tipo de material. Mas essas velocidades são adquiridas quando você aplica uma corrente elétrica, ou seja, tem um custo energético. A pergunta básica é como os skyrmions conseguiriam atingir essa autopropulsão.”
Para dimensionar, o professor compara com fenômenos conhecidos. “É mais simples pensar em algo corriqueiro, como a velocidade em que uma pessoa consegue correr. Temos o recordista dos 100 metros rasos, o Usain Bolt, que chega a quase 45 km/h, algo em torno de 12 metros por segundo. Ele mede 2 metros de altura, então corre seis corpos por segundo. As bactérias se movem em velocidades semelhantes, cerca de dez corpos por segundo. Mas os skyrmions autopropelidos previstos por nós chegam a 200 milhões de tamanhos de corpo por segundo. Fiz uma continha: se o Usain Bolt corresse a uma mesma velocidade, ultrapassaria 400 milhões de metros por segundo. É muito rápido.”
Matheus explica outro ingrediente essencial: “nosso trabalho é baseado em simulações micromagnéticas. Colocamos no computador uma espécie de tabuleiro em que spins do material interagem entre si. Um dos ingredientes é a interação térmica, que reproduz o que acontece na natureza. Estudamos o fenômeno com e sem temperatura. Sem temperatura, o par se autopropulsiona em linha reta. Mas quando adicionamos o ruído térmico, observamos reorientações e até inversões de movimento, mimetizando o comportamento de bactérias como a E. coli, que às vezes mudam bruscamente de direção. Isso torna a simulação mais fidedigna.”
O paralelo com organismos vivos levanta também perguntas sobre aplicações práticas. “É difícil vislumbrar uma aplicação direta no nosso corpo”, admite Clécio. “Os skyrmions nadam apenas dentro do material magnético. Mas, como eles são muito pequenos e rápidos, você pode brincar com uma grande quantidade em laboratório, num chip. Há aplicações possíveis (da matéria ativa inorgânica) em biologia, como entrega de medicamentos diretamente nas células. Talvez, brincando com os skyrmions, se consiga propor formas de montagem desses robozinhos.”
Matheus acredita até que, no futuro, possa haver viabilidade no uso desses redemoinhos na área da saúde, “porque essa autopropulsão pode ser ativada por campos elétricos ou magnéticos”. “Então temos um certo grau de controle sobre o movimento, inclusive pensando em manipular mais de um par e explorar simetrias para controlar esse ‘nanorrobô’. Mas a aplicação direta ainda está distante.”
Entre o futebol e forças girotrópicas
Outro ponto do estudo são as chamadas forças girotrópicas não recíprocas. Clécio detalha que a fonte de energia dos skyrmions é um campo eletromagnético e não o ATP usado por microalgas e bactérias. Eles consomem essa energia de forma eficiente, numa espécie de ressonância. O movimento da autopropulsão é devido à força de Magnus, aquela que faz uma bola de futebol desviar quando chutada com efeito. “A força que faz a bola de futebol fazer um desvio, sabe? Quando você chuta de três dedos, então a bola vai pra frente e faz um desvio, como no gol do Roberto Carlos na Copa de 2002. O skyrmion tem essa força também, que é chamada força de Magnus. E o engraçado é que o movimento da autopropulsão é toda devida a essa força”, diz Clécio.
Como os dois skyrmions interagem como se um fosse a imagem do outro num espelho, a força que os empurraria para frente se cancela e sobra apenas a lateral, que gera o deslocamento perpendicular. “Existe ainda uma não-reciprocidade: a força é mais forte quando eles se aproximam do que quando se afastam”, explica o professor. Matheus lembra que essa foi uma reviravolta curiosa. “No artigo anterior, um dos objetivos era eliminar justamente essa força que costuma desviar os skyrmions. Neste, ela aparece como mecanismo de autopropulsão.”
Nanorrobôs e o corpo humano
A semelhança com bactérias e microalgas inspira reflexões maiores. “É inspirador ver como sistemas tão simples quanto os skyrmions, que não têm estrutura complexa, conseguem reproduzir fenômenos complexos exibidos por organismos vivos. A trajetória que eles executam na tela do computador é incrivelmente semelhante à de uma bactéria ao microscópio”, comenta Clécio. Matheus acrescenta que a pesquisa já avança para um próximo passo: “a sequência imediata é continuar as simulações com ajuda de um cluster de computadores. Claro que conjecturamos uma realização experimental, mas isso depende de colaborações e de encontrar o material adequado. O ponto alto seria realmente ver a realização experimental. Todo teórico sonha com isso.”
Além de Clécio e Matheus, o artigo contou com o físico colombiano Juan Carlos Piña Velasquez, hoje professor no campus do Agreste. “A pesquisa foi feita por nós três e foi bem simbiótica. O Juan fez as simulações que permitiram entender como os skyrmions interagem. Isso foi uma parte importante para mapear as propriedades de autopropulsão”, explica Clécio. O paralelo entre biologia e física levanta questões provocadoras. Se microrganismos podem ser modelados como redes de spins em equilíbrio dinâmico e se sistemas físicos podem imitar o comportamento de seres vivos, as fronteiras entre biologia e física parecem cada vez mais permeáveis. A noção de “matéria ativa”, aplicada a contextos biológicos, ganha uma contraparte em materiais sintéticos capazes de exibir movimentos espontâneos. A pesquisa da UFPE insere-se nesse contexto. Matheus explica que já há estudos sobre skyrmions gerados em água, será que um dia eles também estarão em nosso corpo? O professor conclui com a humildade de cientista que sabe que nada sabe: “aparecer no corpo, não imagino como isso seria possível. Mas a vida sempre traz surpresas.”
Assista à íntegra da entrevista
Colaborou Roger Marzochi