Imagine que você nasceu em uma caverna escura e a única luz que vê são contornos de sombras projetadas na parede da gruta. Essa ideia que inspirou Platão, para além dos conceitos filosóficos, é também uma metáfora interessante sobre o estudo da cosmologia e o surgimento do Universo primordial. Quem explica é o físico brasileiro Guilherme Leite Pimentel, professor na Scuola Normale Superiore, em Pisa, na Itália, que assina o artigo “Kinematic Flow and the Emergence of Time”, publicado na revista Physical Review Letters, em 18 de julho de 2025.

O estudo busca ampliar as ferramentas matemáticas para investigar o antes e o depois do que é considerado como ponto inicial do Big Bang, teoria aceita pela ciência como modelo para a origem do Universo. A questão de fundo é que as observações do cosmos feitas até hoje são essencialmente estáticas. Ao olhar para o céu, o que registramos são padrões espaciais, correlações entre medições feitas em diferentes posições do Universo tardio. A história cosmológica é, nesse contexto, uma construção que usamos para justificar racionalmente esses padrões. Mas os observáveis em si não carregam uma noção explícita de tempo. Isso levanta uma pergunta incômoda: por que insistimos em considerar o tempo como uma variável fundamental, se ele não aparece diretamente naquilo que de fato podemos medir?

“A gente contou a história de trás para frente: ao invés de resolver o problema dinâmico e gerar essa foto estática das perturbações primordiais, a gente estuda no espaço cinemático como as sementes primordiais estão distribuídas. Estuda uma estrutura autônoma, que a gente chama de ‘Cinematic Flow’, que é o título do artigo”, explica Pimentel, que se graduou em Engenharia Eletrônica pelo ITA, fez mestrado em Física no mesmo instituto e doutorado na Universidade de Princeton.

Professor na Scuola Normale Superiore, em Pisa, na Itália, Guilherme Leite Pimentel, que assina o artigo “Kinematic Flow and the Emergence of Time”.

“O interessante é que dessa estrutura você infere a existência de uma linha do tempo que a gente não colocou como input. Imagina que você tem a analogia famosa, que não é minha, da Caverna de Platão, em que você vê essas imagens, essas sombras se movimentando ou então coladas numa parede, e você tenta inferir que há seres humanos sendo iluminados por uma luz e se movendo próximo de você só com essa visão da parede”, explica, em entrevista ao Boletim SBF.

A proposta do artigo é repensar a base da física cosmológica. Em vez de colocar a evolução no tempo como ponto de partida, a ideia é que o tempo possa emergir a partir de estruturas matemáticas mais elementares, definidas em um espaço chamado “cinemático de fronteira”, no qual só aparecem os dados observáveis. Esse espaço descreve o Universo como um sistema fechado de padrões espaciais, cujas variações podem ser descritas por um conjunto de regras combinatórias simples. “Essas regras geram equações consistentes entre si. O mais impressionante é que as soluções dessas equações são evolução no tempo e uma cosmologia anterior ao período tradicionalmente considerado como início do Universo”, diz o físico brasileiro.

O artigo mostra que é possível reproduzir a evolução causal e local do espaço-tempo a partir do fluxo cinemático, definido sem referência ao tempo. A estrutura matemática encontrada revela regularidades inesperadas e se conecta com objetos já conhecidos na matemática, como grafos e tubulações que refletem relações causais. “Imagina que isso é como se fosse um terreno muito corrugado, com montanhas, vales. Onde tem um vale, a sopa primordial se acumula, e ali se forma estrutura. Onde tem pico, a sopa se dispersa e você tem buracos. As equações dizem qual a probabilidade de haver vales a certa distância, e ao se estudar essas correlações, você descobre que esses vales tinham uma origem comum. É assim que o tempo emerge”, explica.

As soluções das equações indicam que essas regiões do espaço estavam se aproximando no passado e compartilham uma mesma origem, o que reforça a ideia de uma linha do tempo implícita, mesmo num cenário sem evolução explícita. A construção tem apenas um parâmetro livre, o que torna o modelo matematicamente rígido. “A única liberdade que essa estrutura tem é um número que escolhe a curvatura do espaço-tempo nessa linha do tempo primordial”, diz Pimentel.

O trabalho se limita, por enquanto, a um modelo idealizado, com campos escalares conformemente acoplados em um universo do tipo Friedmann-Robertson-Walker com expansão dada por uma lei de potência. Mesmo assim, a equipe acredita que situações mais realistas podem apresentar estruturas similares, como em campos com massa geral em um Universo de Sitter, modelo criado pelo astrônomo holandês Willem de Sitter que descreve um Universo que se expande aceleradamente, mesmo sem matéria ou radiação, apenas com a presença de uma constante cosmológica. “Esse artigo surgiu da necessidade de entender em mais detalhe como calcular, dada uma linha do tempo da inflação, a evolução das perturbações do Universo. O método padrão é muito complicado. Pensamos então: por que não estudar como essas flutuações estão distribuídas ao final da inflação?”, questiona o físico brasileiro.

Foi nesse processo que surgiram representações gráficas das equações e a descoberta de que essas figuras “tinham vida própria”. O que era uma técnica mnemônica revelou-se uma estrutura autônoma. “O sonho, daqui a alguns anos, é que essa estrutura possa dispensar completamente a noção de tempo e nos ajude a compreender o início real do Universo, no qual o espaço-tempo talvez nem faça sentido”, prevê o cientista brasileiro, que conheceu a Sociedade Brasileira de Física (SBF) quando estava no colegial. “Eu fui do segundo time do Brasil na Olimpíada Internacional de Física, em 2001, na Turquia.”

Apesar de ainda não ser possível aplicar diretamente essa abordagem ao problema completo do Big Bang, a proposta oferece uma ferramenta teórica com potencial para reestruturar a cosmologia. “Hoje, o universo é descrito com base em três pilares: o setor escuro, o setor visível e as condições iniciais. Nosso trabalho se concentra nesse terceiro pilar, propondo uma nova maneira de pensar essas condições”, explica. “Em termos práticos, isso significa buscar uma ponte entre as flutuações quânticas iniciais e os dados que observamos hoje, sem precisar simular toda a evolução temporal.”

Pimentel ressalta que essa busca é parte de uma empreitada maior da física fundamental. “Um dos problemas importantes é entender os efeitos quânticos da gravidade. A gravidade é a força mais fraca, mas a que mantém tudo aglutinado. Ela é mal compreendida em termos quânticos”, explica o físico. “O interior de um buraco negro é uma boa analogia: ali, tudo está no futuro. A dinâmica se parece com a da cosmologia. E a gravidade quântica tem grande importância no início do Universo, a única arena em que gravidade e mecânica quântica são igualmente importantes com consequências observacionais é a cosmologia primordial. O sonho é entender de onde vem esse período de inflação e de onde vem o início do Universo”, diz Pimentel.

O tempo, nesse novo cenário, não é descartado, mas reinterpretado. Ele deixa de ser uma entidade fundamental e passa a ser uma ferramenta útil, que emerge da organização dos dados observáveis, sempre que a estrutura matemática mais profunda assim o permite. Aos poucos, com o aprimoramento de modelos físico e matemáticos, a humanidade vai deixando as sombras da caverna, ao menos no que se refere ao estudo da origem do cosmos.

Assista à entrevista completa no canal da SBF no YouTube:

(Colaborou Roger Marzochi)