Desde a antiguidade, a humanidade já lidava com jogos de azar: dados, moedas e cartas serviam não só para entretenimento, mas também como forma de consultar os deuses, decidir destinos e até guerras. Mas o que os jogos de azar têm a ver com códigos digitais e computação quântica? Um estudo publicado em 2025 na Revista Brasileira de Ensino de Física mostra que o conceito de aleatoriedade, embora pareça intuitivo, está no coração da segurança digital, da simulação científica e do desenvolvimento tecnológico, especialmente agora, com o avanço da segunda revolução quântica.

No artigo “Geradores de números aleatórios: da pseudoaleatoriedade à verdadeira aleatoriedade na era da segunda revolução quântica”, pesquisadores das áreas de Física e Computação da UFSCar, USP e UnB analisam os fundamentos e os desafios de se gerar números verdadeiramente aleatórios. Afinal, nem tudo que parece aleatório realmente é: e, em cibersegurança, isso pode fazer toda a diferença.

Ao pressionar o botão “RAND” em uma calculadora, o número gerado não vem do acaso puro, mas de um algoritmo determinístico, uma espécie de lista que simula o aleatório. Esses são os chamados geradores pseudoaleatórios (PRNGs), que funcionam bem em simulações e aplicações estatísticas, mas falham quando o requisito é imprevisibilidade absoluta, como em criptografia. Se alguém descobrir a semente usada para gerar os números, ele pode prever toda a sequência.

Para suprir essa demanda, entram os geradores verdadeiramente aleatórios (TRNGs), que extraem números a partir de fenômenos físicos imprevisíveis, como ruído térmico em resistores, radiação cósmica ou oscilações em circuitos eletrônicos. Mas mesmo eles enfrentam limitações, como a baixa taxa de geração ou a suscetibilidade a interferências externas.

“Embora se possa discutir filosoficamente que o universo pode ser determinístico e que nada é realmente imprevisível, isso não é relevante para aplicações criptográficas, pois o que importa é que os valores sejam impossíveis de prever por adversários contemporâneos”, escrevem os cientistas Filippo Ghiglieno (UFSCar), Luiz Roncaratti (UnB), Lucca Rodrigues Cunha (unB), Pedro Calligaris Delbem (USP), Rodrigo Silva de Almeida (USP), Antonio Mauro Saraiva (USP), Alexandre Delbem (USP).

É aqui que a física quântica se destaca. Diferentemente dos sistemas clássicos, a mecânica quântica é inerentemente probabilística. Fenômenos como a superposição, a incerteza e o colapso de estados ao serem medidos garantem que certos eventos são, de fato, imprevisíveis: não por falta de informação, mas por princípio. Os geradores quânticos de números aleatórios (QRNGs) se aproveitam disso para produzir sequências com altíssima entropia e resistência a manipulações.

Segundo os autores, QRNGs baseados em fótons individuais ou qubits supercondutores já são comercializados por empresas e sua aplicação está crescendo em áreas como criptografia pós-quântica, simulações científicas e até mesmo loterias digitais. “Quantum Dice, ID Quantique e PsiQuantum são empresas que já estão oferecendo produtos comerciais de hardware baseados em tecnologia quântica para a geração de números aleatórios, enquanto empresas como IBM, Amazon e Microsoft oferecem serviços de software em nuvem para acessar hardware capacitado para atender a determinados tipos de demandas, com um conjunto de transformações de estado úteis para a computação quântica”, escrevem os cientistas no artigo.

Entropia e confiança

Um dos conceitos-chave discutidos no estudo é o de entropia, que mede o grau de imprevisibilidade de um sistema. Em termos simples, uma moeda perfeitamente equilibrada tem entropia máxima (1 bit por lançamento), mas se a moeda for viciada, essa entropia diminui. O mesmo vale para geradores de números: quanto mais tendenciosa a saída, menor sua utilidade em aplicações críticas.

O artigo traz inclusive um exemplo didático: ao usar um diodo Zener ou um circuito oscilador para capturar ruídos físicos, é possível gerar bits aleatórios, mas a qualidade depende da fonte e do ambiente: interferências eletromagnéticas, aquecimento e até envelhecimento dos componentes podem comprometer os dados.

Para garantir que esses sistemas funcionem corretamente, os autores destacam a necessidade de testes rigorosos, como os testes NIST e DieHard, além de extratores de aleatoriedade, que são algoritmos matemáticos que “limpam” os dados de viés. Uma das técnicas mais antigas, criada por John von Neumann, filtra os bits para aumentar a entropia, mesmo que isso reduza a quantidade final de dados.

Do chip ao cosmos – O estudo também descreve diferentes arquiteturas de TRNGs, desde métodos simples, como os baseados em diodos ou ruídos de relógio, até abordagens sofisticadas como a Multiplicação Modular de Entropia (MEM). Essa técnica amplifica sinais analógicos imprevisíveis usando um conjunto de regras simples, resultando em flutuações de voltagem aleatórias que são depois transformadas em bits digitais. É uma solução barata, resistente a ataques e de fácil implementação.

“A grande inovação da MEM está em um processo de multiplicação de entropia que aplica um conjunto de regras muito simples para amplificar as variações do ruído. Isso cria flutuações de voltagem intensas e aleatórias, que são então convertidas em dados digitais ou bits para a geração de números aleatórios. Esse sistema de regras e amplificação é desenhado para ser de baixo custo e resistente a interferências eletromagnéticas, uma vantagem importante para proteger a integridade dos dados gerados”, explicam os autores do estudo.

Para o futuro, os pesquisadores ressaltam a importância de integrar TRNGs e QRNGs a sistemas mais amplos de segurança, como os CSPRNGs, que são geradores pseudoaleatórios criptograficamente seguros. Mesmo que os TRNGs sejam lentos, 512 bits de aleatoriedade real já são suficientes para semear um CSPRNG que manterá a segurança das aplicações modernas.

Além das implicações tecnológicas, o artigo também reforça o valor didático da aleatoriedade. Entender a diferença entre sorte aparente e caos verdadeiro ajuda estudantes a compreenderem conceitos fundamentais de estatística, física e ciência da computação. “Com o mercado global em rápida expansão e a crescente demanda por sistemas mais seguros, eficientes e robustos, a inclusão de RNGs nos currículos e projetos de pesquisa pode estimular o desenvolvimento de tecnologias disruptivas que atendam às necessidades tecnológicas e estratégicas futuras”, afirma os autores. Sem dúvida, a era da computação quântica, onde um único bit pode carregar incertezas fundamentais da natureza, pensar sobre o que é realmente aleatório não é mais um jogo de sorte, mas sim uma questão de segurança, ciência e soberania digital.

(Colaborou Roger Marzochi)