Assim como a alça de uma panela pode impedir queimaduras ao usar um material isolante térmico, os astronautas também ficam protegidos do calor extremo, dentro de uma nave espacial, durante a reentrada na Terra porque a nave é revestida de um material isolante térmico, que dificulta a transferência de calor para o seu interior. Isso revela a importância na busca do estudo das propriedades físicas e na concepção de novos materiais que possam auxiliar o desenvolvimento de novas tecnologias.

É nesse contexto que cientistas observaram que um material chamado bismutato de bário (BaBiO₃)  apresenta um comportamento térmico anômalo. Esse material, embora seja um cristal com sua estrutura interna bem organizada, se comporta como um vidro quando o assunto é conduzir calor.

A surpresa vem do fato de que o BaBiO₃ parece um óxido usual, com seus átomos dispostos com a precisão gráfica dos “Metaesquemas” do artista plástico Hélio Oiticica, formas alinhadas em uma geometria quase perfeita. Mas, por dentro, ele esconde movimentos sutis, caóticos, que atrapalham a passagem do calor, quem sabe bem próximo à obra “A dança sagrada do pajé”, do artista plástico José Roberto Aguilar, apresentada no ano passado na exposição “Amazônia Vida”, em Votorantim, no interior de São Paulo.

É como se esse cristal estivesse “camuflado de vidro”: por fora, ordem; por dentro, instabilidade. Esses efeitos internos impedem que as vibrações atômicas quantizadas, os fônons, principais responsáveis pela condução de calor em materiais isolantes cristalinos, se transmitam livremente, e acabam se espalhando intensamente. Como resultado, o calor não se propaga bem: fica preso, interrompido, como se estivesse tentando atravessar um labirinto em constante movimento.

“Ele tem um comportamento muito anômalo, porque parece meio que uma coisa híbrida, entre um vidro e um cristal”, explica a professora Valentina Martelli, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP), que coordenou a pesquisa publicada recentemente na revista Advanced Science e liderou a parte experimental do projeto, em colaboração com o Prof. Walber Hugo de Brito do Departamento de Física da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que liderou a parte teórica do trabalho.

A equipe que deu origem ao artigo é formada por um grupo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Destaca-se o aluno de Doutorado Alexandre Henriques (IFUSP), primeiro autor do trabalho, que realizou as medidas de transporte térmico e que desenvolveu algumas plataformas avançadas para os experimentos que são inéditas no Brasil. “É um cristal muito limpo, é um cristal muito ordenado, e, ainda assim, conduz o calor muito mal, pois apresenta assinaturas típicas de um vidro. E isso aqui chamou muito a nossa atenção”, diz Valentina ao Boletim SBF.

“O bismutato de bário, na verdade, é conhecido faz muito tempo, mas o seu estado isolante não foi ainda compreendido. E há muitas teorias que tentam explicar algo ainda mais interessante: quando dopado, ele vira um supercondutor de alta temperatura. Então, tem muito mistério a respeito desse material.  A descoberta reportada no artigo trouxe à tona uma visão ainda mais ampla sobre esse comportamento anômalo.”

O trabalho foi parte do projeto de doutorado do estudante Alexandre Henriques e contou com a pós-doutora Mariana S. L. Lima, também do IFUSP. A pesquisa analisou a condutividade térmica de monocristais de BaBiO₃ em uma faixa ampla de temperatura, de 1,5 a 400 kelvin (ou de -271°C a 127°C), combinando experimentos de laboratório e cálculos teóricos realizados em supercomputadores.

O que os cientistas observaram é que, ao variar a temperatura, em vez de apresentar um aumento e depois uma queda suave na condutividade térmica, comportamento típico de cristais isolantes, o BaBiO₃ mostrou três comportamentos inesperados. Em temperaturas muito baixas, abaixo de 5 kelvin, a condutividade térmica segue uma dependência proporcional a T², o que é incomum. Entre 20 e 260 kelvin, forma-se um “platô”: uma faixa onde a condutividade quase não varia. E só acima de 300 kelvin é que o material volta a exibir uma queda, como seria esperado para um cristal. No geral, o BaBiO₃ a temperatura ambiente conduz tão pouco calor (em valor absoluto) quanto materiais vítreos, apesar de sua estrutura cristalina bem definida.

Para explicar esse comportamento, os pesquisadores estudaram os fônons no BaBiO3 e como esses se espalham, fazendo uso de simulações computacionais. Foi proposto que o  material abriga sistemas de tunelamento de dois níveis, conhecido pela sigla TTLS (tunneling two-level system). Esse conceito, originalmente formulado por P. W. Anderson e outros, para descrever o comportamento térmico de vidros, envolve pequenos grupos de átomos que oscilam entre dois estados energéticos quase estáveis, que são bem comuns em estruturas desordenadas como vidros. Essas oscilações funcionam como obstáculos para os fônons, gerando espalhamentos que atrapalham o transporte de calor. No caso do BaBiO₃, esses efeitos estariam associados a instabilidades dinâmicas associadas aos octaedros de bismuto oxigênio (BiO₆), que compõem a base estrutural do material.

“Por meio de simulações computacionais, entendemos um pouco melhor o que são os mecanismos de espalhamento entre esses fônons, que vai dar origem a uma baixa condutividade térmica”, explica Walber. “O que a gente fez foi, além de entender as propriedades dos fônons nesse material, foi também revelar uma característica que é chamada de anarmonicidade.”

Em outras palavras, as vibrações dos átomos não seguem uma relação linear simples: elas são mais complexas, o que contribui ainda mais para dificultar a propagação do calor. Essas propriedades não só explicam o comportamento térmico observado, como também levantam hipóteses sobre a origem de outras propriedades do material, como sua capacidade de se tornar supercondutor quando dopado com potássio ou chumbo. “Através dos cálculos, a gente consegue quantificar a anarmonicidade do composto utilizando um parâmetro chamado parâmetro de Grüneisen. E com isso verificamos que esse composto tem uma anarmonicidade considerável”, completa o professor da UFMG, que no momento atua como pesquisador visitante na Rutgers University (EUA).

Do ponto de vista experimental, os dados foram obtidos usando dois métodos principais: o método estacionário, baseado em fluxo constante de calor, e o método 3ω, que aplica uma excitação térmica oscilante ao material. Os experimentos foram realizados nas instalações do laboratório LQMEC (Laboratory for Quantum Matter under Extreme Conditions), que foi recentemente implementado no Instituto de Física em colaboração com o Prof. Julio Larrea (IFUSP), e com financiamento majoritário da FAPESP.  As simulações computacionais realizadas em supercomputadores brasileiros como o Santos Dumont (https://sdumont.lncc.br/, LNCC), o Ada Lovelace (CENAPAD-SP) e o Coaraci (Unicamp), usaram técnicas de dinâmica molecular, Teoria do Funcional da Densidade (DFT) e aprendizado de máquina para prever o comportamento dos fônons e seus mecanismos de espalhamento.

“A pesquisa exigiu consideráveis recursos computacionais, mas não foi a parte mais difícil desse ponto de vista”, diz Walber. “A parte mais custosa foi em relação ao cálculo do que seria a condutividade térmica do cristal, porque exigiu o uso de algumas centenas de núcleos de processamento e uma rede de comunicação rápida entre esses diferentes nós de computação”, continua ele, explicando que foi desta forma que a equipe conseguiu desvendar alguns dos mistérios do material e preencher uma lacuna que havia até então sobre a teoria.

A descoberta tem implicações diretas em diversas áreas tecnológicas. Materiais com baixa condutividade térmica são valiosos como isolantes térmicos em dispositivos eletrônicos que operam em ambientes hostis (aeroespaciais e de defesa). Também são úteis em sistemas termoelétricos, que convertem calor residual em eletricidade, uma área estratégica para geração de energia limpa e aproveitamento do calor gerado em processos industriais. Além disso, o BaBiO₃ pode ser usado como componentes para heteroestruturas funcionais, que combinam diferentes materiais em camadas finas para gerar propriedades otimizadas, como filtros térmicos, sensores para tecnologias quânticas, e sensores que também podem detectar variações de temperatura.

“Dispositivos termoelétricos, tipo célula Peltier, são aquelas que, por exemplo, que estão nos bebedouros”, lembra Valentina, no qual a água quente passa e se torna fria. Para gerar eletricidade, nesse caso, o processo é invertido. A ideia é aproveitar justamente aquilo que normalmente se perde: o calor. “Então esses tipos de materiais podem gerar energia elétrica a partir do que se perde no processo, que é o calor. E por que é importante quando a gente descobre um material que é altamente cristalino, mas ao mesmo tempo ele conduz muito mal o calor? Porque ele vem nesse momento com a promessa de poder ser uma plataforma.”

Segundo Valentina, o bismutato de bário não é um material usado no momento em dispositivos termoelétricos “porque ele não tem elétrons para o transporte, ele é um isolante elétrico”. “Então, se a gente imagina fazer uma dopagem, como ele se comportaria? Ele já tem uma condução térmica muito baixa, tão baixa quanto a de um vidro?”

Ela ressalta que o desafio está justamente aí. “Normalmente, o gargalo aparece quando você começa a mexer no material. Ele fica muito desordenado”, diz ela, para quem avalia que controlar ao mesmo tempo a parte elétrica e a estrutura cristalina não é nada trivial, porém é fundamental para otimizar o desempenho de um material termoelétrico. “Então esses materiais, que são raros, tornam o que conseguimos observar muito relevante, justamente por apresentar essas duas características ao mesmo tempo.”

Walber completa explicando que há uma “perspectiva de aplicações na área de defesa e aeroespacial”. “E, em relação à combinar esse óxido com outros, fazer essas heteroestruturas, super-redes de óxidos complexos, o interessante é poder, ao combinar esses diferentes materiais, ter outras propriedades que não podem ser observadas nos compostos isolados.”

Embora o BaBiO₃ seja conhecido há décadas, esse estudo é um exemplo de como olhar para um material sob uma nova perspectiva pode revelar propriedades até então invisíveis. Também mostra a importância da colaboração entre experimentos sofisticados e simulações computacionais de ponta para entender o comportamento da matéria. A pesquisa teve apoio da Fapesp, CNPq e do Instituto Serrapilheira, e contou com a colaboração de cientistas internacionais, os Drs. Goran Nilsen e Matthias Guttman (ISIS Neutron and Muon Source, Reino Unido) e do Dr. Steffen Wirth (Instituto Max Planck de Dresden, CPFS, Alemanha).

No fim das contas, o BaBiO₃ é um cristal que age como se fosse vidro, um exemplo de como a natureza pode surpreender mesmo dentro da ordem, ou justamente por causa da instabilidade dentro dela, o que a torna tão bela ao expressar a arte intrínseca da natureza que nos cerca e da qual fazemos parte.

Assista à entrevista completa com os cientistas 

(Colaborou Roger Marzochi)