Ao tentar entender a natureza, a humanidade não apenas a contempla, muitas vezes busca também recriá-la. Com esse espírito, dois pesquisadores brasileiros demonstraram que é possível gerar, em laboratório, estruturas matematicamente sofisticadas que lembram padrões vistos na natureza, como as ramificações de um rio ou a forma de uma nuvem. Mas não foi uma tarefa simples: foram necessários anos de estudo, matemática avançada, experimentos automatizados e simulações para transformar um fenômeno natural em ciência precisa.

Em um estudo publicado em abril de 2025 na prestigiada Physical Review Letters (PRL), os físicos Renan A. L. Almeida e Jeferson J. Arenzon, ambos do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mostraram que cristais líquidos nemáticos torcidos — um tipo de material usado, por exemplo, em telas de LCD — podem, durante sua reorganização interna, formar espontaneamente padrões conhecidos como fractais. Mais que isso: esses padrões obedecem às leis matemáticas da percolação crítica, um fenômeno que tem sido estudado há décadas por físicos e matemáticos.

“A gente conseguiu criar alguns fractais que têm certa similaridade com a beleza expressa na natureza, com a diferença de que foi necessária muita matemática para chegar a esse processo”, explica Renan Almeida. “Os fractais que aparecem no nosso experimento são como clusters da percolação crítica. Mas diferente de fractais na matemática, você não pode dar um zoom infinito e sempre obter a mesma imagem, o mesmo objeto, porque o sistema é finito e tem escalas características. Aqui, na nossa pesquisa, é um fractal que tem uma dimensão que é não inteira.”

Fractais são estruturas que se repetem em diferentes escalas. Na natureza, aparecem nos galhos das árvores, nos leitos dos rios ou nas bordas das nuvens.  No experimento, os fractais se formam durante o processo conhecido pelos físicos como cinética de ordenamento de fase, no qual o material transita de uma fase desordenada para uma fase ordenada, caracterizada pela formação de domínios com simetrias bem definidas. “Esses domínios formam clusters que crescem e eventualmente dominam o sistema. Em um momento muito particular, chamado tempo crítico (Tp), essas estruturas atingem a chamada percolação crítica: é quando um cluster consegue atravessar todo o sistema. A partir desse ponto, ele se estabiliza, e as propriedades estatísticas da percolação crítica começam a ser observadas com clareza”, explica Renan.

Esse estudo de 2025, por sua vez, foi inspirado justamente por um trabalho anterior de Renan A. L. Almeida, publicado em dezembro de 2023 também na Physical Review Letters. Nesse estudo pioneiro, Almeida mostrou que, durante um instante específico da reorganização dos cristais líquidos — chamado de tempo crítico (tₚ) — o sistema parece ser atraído para o ponto fixo da percolação aleatória. Foi nesse momento que as probabilidades de travessia coincidiram com as previsões teóricas da percolação.

A palavra “percolação”, aliás, tem uma origem intuitiva: vem do inglês percolator, usado em cafeteiras, explica Arenzon, cientista que é também divulgador científico do podcast “Fronteiras da Ciência” (http://frontdaciencia.ufrgs.br). ”Assim como a água passa pelo pó de café, num sistema físico a percolação representa o momento em que uma estrutura ou conexão atravessa um meio desordenado”, explica Arenzon. “Num trabalho mais antigo meu, em colaboração com cientistas na França e na Inglaterra, a gente descobriu meio que por acaso essa conexão do crescimento de domínios com a percolação crítica. A gente não estava procurando isso. Então foi uma coisa surpreendente e que depois se desdobrou em uma série de trabalhos de outros grupos relacionados a isso.”

A matemática nos contornos

As fronteiras dos clusters — chamadas hulls — foram estudadas pelos pesquisadores com base em teorias matemáticas desenvolvidas por Lawler, Schramm e Werner. Um dos pontos importantes do estudo é que essas bordas apresentaram características compatíveis com curvas chamadas SLE (Evolução Schramm-Loewner), um tipo de curva aleatória que respeita simetria conforme. No experimento, essas curvas apresentaram exatamente o valor de difusividade (κ) igual a 6, o mesmo valor previsto para sistemas de percolação crítica bidimensionais.

“A gente mediu a variação de ângulo ao longo das curvas, uma quantidade chamada Winding Angle. Esse parâmetro, para curvas SLE, cresce de forma logarítmica com o comprimento percorrido, multiplicado por um fator que depende de κ. No nosso caso, esse fator bateu exatamente com κ = 6”, relata Renan. “Esse resultado é relevante porque mostra que pesquisas teóricas altamente abstratas, muitas vezes premiadas, podem ser aplicadas com sucesso em sistemas físicos reais e complexos.”

O professor Jeferson Arenzon destaca a importância do conceito de universalidade na física estatística ao falar sobre a importância dessa pesquisa. “Esses resultados não são exclusivos dos cristais líquidos que usamos. A universalidade implica que outros sistemas, com estruturas e dinâmicas diferentes, podem apresentar o mesmo comportamento estatístico. Isso já foi observado, por exemplo, no modelo de Ising, que é uma espécie de drosófila da física teórica — usamos para testar quase tudo.”

Apesar da similaridade com os fractais da natureza, há diferenças importantes. Os fractais reais, como os observados em costas litorâneas ou nuvens, não obedecem a uma regra fixa: há sempre um grau de desordem envolvido. Os observados no experimento também são finitos, ou seja, não se repetem infinitamente como nos fractais matemáticos ideais. “O que a gente observa é que se eu amplio meu sistema e vejo estruturas parecidas, isso indica que o sistema tem buracos em várias escalas — essa é a essência de um fractal: estruturas que não preenchem completamente o espaço, mas sim deixam vazios de todos os tamanhos”, comenta Arenzon.

Embora o estudo tenha um caráter de ciência fundamental, os pesquisadores acreditam que os desdobramentos podem atingir a tecnologia em algum momento. “Quando fazemos ciência básica, a gente não tem a preocupação imediata com aplicação. Mas sabemos, por experiência histórica, que a física e a matemática acabam se pagando. Essas descobertas geram uma avalanche de novos estudos e, eventualmente, aplicações imprevisíveis”, afirma Arenzon.

Além disso, os resultados obtidos já influenciaram outras áreas da física estatística. A equipe foi capaz de demonstrar propriedades como o escalonamento dinâmico, um comportamento observado em diversos sistemas, mas até então sem comprovação experimental precisa. Renan Almeida e Jeferson Arenzon pretendem continuar investigando as dinâmicas de clusters em outros sistemas fora do equilíbrio. “Estamos analisando os dados experimentais e, ao mesmo tempo, buscando padrões em outros sistemas para ver se essas leis se aplicam também. A ideia é testar a robustez da universalidade”, explica Almeida.

A busca por compreender como a ordem emerge do caos, e como padrões complexos podem surgir espontaneamente em sistemas físicos, permanece como uma das grandes motivações da ciência. E estudos como este mostram que, ao olhar com olhos científicos para materiais do cotidiano — como cristais líquidos —, podemos tocar em alguns dos mistérios mais profundos da natureza.

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(Colaborou Roger Marzochi)