A internet no Rio de Janeiro vai parar! Pode parecer jornalismo sensacionalista, mas talvez esse alerta seja o mais forte a ser feito para que a população entenda de início que isso é o que exatamente vai acontecer se o governo brasileiro, incluindo as instâncias do Executivo e Legislativo Nacional, mantiverem no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2026 os cortes no Orçamento do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), responsável pela Rede Rio, que gerencia todo o tráfego da rede mundial de computadores em empresas e órgãos públicos, incluindo hospitais e unidades de defesa nacional, no Rio de Janeiro.
Criado em 1949 após o sucesso internacional do cientista brasileiro César Lattes na área da física nuclear, o CBPF contou inicialmente com apoio da iniciativa privada e, aos poucos, de vários governos ao longo dos anos. Ana Maria Ribeiro de Andrade, que escreveu o livro “Físicos, Mésons e Política – A Dinâmica da Ciência na Sociedade”, conta que em 1946 ficou claro que o País precisava aprimorar a geração de energia, à época com dependência de 82% de lenha, 3,9% de carvão importado e apenas 1,6% de energia hidroelétrica. “A exploração do petróleo, principalmente, e a construção de usinas nucleares se apresentavam como alternativas viáveis”, explica a escritora na página 77, citando em nota de rodapé que os soviéticos haviam criado em 1954 a primeira usina termonuclear do mundo.
Além de colaborar no desenvolvimento da pesquisa nuclear no Brasil, usada não apenas para a indústria, geração de energia e defesa nacional, mas principalmente na Medicina Nuclear, os físicos do CBPF eram monitorados antes mesmo da criação do órgão. Como já reportamos no Boletim SBF sobre artigo publicado na Revista Brasileira de Ensino de Física feito pelo pesquisador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), Alfredo Tiomno Tolmasquim, os cientistas do CBPF já foram alvo de perseguições políticas que chegam ao ápice com a Ditadura de 1964, que levou a um processo de desmonte do órgão que chegou ao ápice na década de 1970, com cientistas resistindo e negociando saídas para o histórico projeto das pesquisas nucleares no País. Após grandes investimentos nos últimos anos e contratação de pessoal, o CBPF enfrenta um novo paradoxo de vôo de Ícaro sob um maremoto de acontecimentos nacionais e internacionais que desafiam a sociedade.
Os cortes no Orçamento da instituição já começaram em 2025, de forma que o órgão já está reduzindo suas atividades. Com contas de luz atrasada, que podem danificar equipamentos de alta tecnologia que custam na ordem dos milhões de reais, a instituição ainda corre o risco de perder colaboradores especializados que vão desde as áreas administrativa, técnica e científica. Além da tão preciosa internet do carioca, o CBPF é responsável por sistemas de extrema importância ao CNPq, reúne também um sistema computacional para análise de dados do CERN, o centro europeu que administra o maior acelerador de partículas do mundo, do qual o Brasil é agora signatário.
O CBPF ainda é a “casa” da Rede Nacional de Física de Altas Energias (RENAFAE). Paradoxalmente, o governo contratou dezenas de cientistas, muitos repatriados do exterior, que agora têm novas complexidades para além dos segredos da matéria para equacionar, podendo até deixar o País porque, afinal, físico (a) também paga boleto. Hoje, o órgão reúne 121 servidores após a entrada de novos contratados no atual governo, e 106 terceirizados.
“Nós estamos nessa encruzilhada de decidir entre parar as atividades de fato, prejudicando nossa missão, demitir parte do corpo de terceirizados, servidores que a gente não pode demitir, reduzir as jornadas de trabalho, reduzir o uso de energia elétrica”, enumera os desafios o físico João Paulo Sinnecker, vice-diretor do CBPF, em entrevista ao Boletim SBF. Durante a entrevista, João Paulo explicou que estava sem ar-condicionado, por sorte, era uma terça-feira de temperatura amena no Rio, mas isso prejudica não apenas estudantes em salas de aula, mas equipamentos caríssimos que precisam de refigeração. Durante a entrevista, por exemplo, houve um pico de energia que paralisou a transmissão via ZOOM da conversa.
Em 2025, o CBPF solicitou ao governo R$ 26 milhões para manter suas atividades, mas recebeu a sinalização de apenas R$ 19 milhões, e mesmo esse valor chegou de forma fragmentada, dificultando a gestão. “O orçamento não chegou inteiro. Ele chegou por partes e, num determinado momento, se eu não me engano, foi em junho, houve uma publicação de uma decisão do Planejamento e da Fazenda de que haveria um contingenciamento e um cancelamento”, explica João Paulo. O resultado foi a perda de R$ 2,8 milhões que estavam previstos para despesas essenciais.
Na prática, a direção teve que optar entre romper contratos de manutenção, como os de elevadores, sistemas de refrigeração e fornecimento de energia, ou reduzir a jornada dos terceirizados. A escolha foi a de buscar um equilíbrio: a jornada de trabalho caiu 25%, e com ela, os salários foram reduzidos no mesmo grau. Parte da equipe entrou em férias.
O objetivo foi manter o conhecimento acumulado dessas pessoas, que há anos atuam na gestão, na segurança, na operação de sistemas, no suporte às pesquisas e na produção de conhecimento. “Se a gente demite, a gente não pode contratar pela mesma empresa, mesmo que o problema seja sanado, em um período de seis meses. E isso desmobiliza… enfim, a gente perde essa pessoa especializada.”
Ainda assim, a economia obtida não foi suficiente. As contas de energia se acumularam e a instituição passou a negociar diretamente com a Light para evitar cortes no fornecimento. A saída encontrada foi ligar o gerador a diesel no horário de pico, das 18h às 21h, aliviando a sobrecarga elétrica e garantindo o funcionamento do data center e da Rede Rio, responsável por todo o tráfego de internet de universidades, hospitais e órgãos públicos do Estado e armazenamento de dados do governo federal. Essa medida reduziu em torno de R$ 40 mil os gastos mensais, mas expôs a fragilidade de uma instituição que está na vanguarda científica passando o chapéu à plateia da mesma forma como um músico experiente que não faz dancinha no TikTok.
O impacto direto já pode ser sentido. Laboratórios multiusuários deixaram de receber novas demandas externas. Teses de doutorado estão atrasadas. Microscópios de alta precisão correm o risco de sofrer danos irreversíveis por falta de energia. “Se um microscópio desse parar por muito tempo, por falta de luz, por exemplo, isso pode danificar o canhão do microscópio. E aí, o custo para recuperar isso é muito maior do que a conta de luz que deixou de ser paga”, alerta o vice-diretor.
A Rede Rio, que deveria ser sinônimo de estabilidade, também está também na corda bamba. Fibras ópticas vandalizadas e cabos rompidos dependem de equipes ágeis e treinadas para manutenção. Agora, com pessoal reduzido, o tempo de resposta aumenta e a chance de pequenos apagões cresce. “O fato de a gente ter que diminuir as equipes e descontratar gente vai fazer com que a gente demore mais para resolver os problemas, o que vai ter um impacto. Pode ser que ocorram pequenos apagões. E a recuperação, embora haja redundância, talvez seja muito menor.”
As restrições atingem até a área estratégica da computação quântica. O CBPF abriga o primeiro laboratório nacional com equipamentos para todo o processo de fabricação e caracterização de chips quânticos. Um investimento de peso, comparável a estruturas como o Sirius, em Campinas, explica João Paulo. Mas sem manutenção adequada, essa infraestrutura corre risco de ficar paralisada, comprometendo anos de avanço científico.
Outro setor afetado é o de importações. O CBPF desenvolveu uma expertise única para lidar com processos de aquisição de grandes equipamentos no exterior, conhecendo os trâmites para compra desses equipamentos de alta tecnologia no exterior. Foi essa equipe, por exemplo, que viabilizou a chegada do supercomputador do LNCC, importado da França. Hoje, esse serviço está suspenso. “Nós interrompemos agora mesmo o serviço de importação porque a gente não tem garantias, pois um processo de importação leva muito tempo”, diz Sinnecker.
De um lado, o Brasil se tornou signatário do CERN, o maior acelerador de partículas do mundo, ampliando colaborações internacionais; do outro, vê ameaçada a própria estrutura que sustenta a Rede Nacional de Física de Altas Energias (RENFAE), sediada no CBPF, instituição que também processa dados do CERN e conecta universidades e instituições de ponta. A cada corte, mais difícil fica manter acordos e responsabilidades que já colocaram o País no mapa da ciência mundial, mas parece que o voo chega de forma perigosa muito próximo do Sol, ameaçando a cera que prende as frágeis penas de Ícaro.
Nesse voo, o horizonte parece não ser um “Céu de Brigadeiro”, mas de “Língua de Sogra”, com respeito aos doces e às sogras que fogem ao estigma das relações sociais patriarcais. Essa brincadeira com as palavras não tem muita graça, mas traduz o momento delicado de um centro que já viveu crises profundas, mas que agora vê suas funções mais elementares colocadas em risco por conta de um orçamento incompatível com sua missão.
Há, no entanto, um vento trazendo boas notícias. O projeto de transformar o pavilhão Mário de Almeida em Centro de Memória da Física está caminhando, graças ao aporte do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Após negociações com a UFRJ, proprietária do prédio, e com o apoio de entidades científicas como Sociedade Brasileira de Física (SBF), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Academia Brasileira de Ciência (ABC), foi possível preservar o espaço histórico. “Nós conseguimos, através de muita negociação, com a ajuda do Ministério, inclusive, do Ministério de Ciência e Tecnologia, e rodas de discussão, reitores, etc., nós chegamos a um consenso de preservar o pavilhão de Almeida”, diz João Paulo.
A reforma permitirá não apenas a preservação da sala onde César Lattes revelava emulsões nucleares, mas também a instalação de áreas para seminários, minicursos e exposições. O projeto inclui ainda a permanência do Centro Latino-Americano de Física (CLAF) no local e a criação de um pequeno museu, capaz de aproximar o público da história da física no Brasil.
Como contrapartida à cessão de outro espaço para a UFRJ, o CBPF recebeu recursos para projetar um prédio de expansão no Parque Tecnológico na Ilha do Fundão. Esse novo edifício deverá abrigar laboratórios e escritórios, ampliando a capacidade da instituição. Porém, os avanços correm o risco de se transformar em mais um “voo de galinha” caso o orçamento não seja recomposto.
“Isso também está andando, a gente já recebeu os recursos para fazer o projeto executivo, já está se planejando para tudo isso. Nesse aspecto, essa restrição orçamentária ainda não nos afetou, mas ela pode nos afetar. Por quê? Porque para gerir o pavilhão Mario de Almeida e para gerir a expansão do CBPF, nós vamos precisar ampliar a nossa equipe”, afirma João Paulo.
A preocupação é que os mesmos gargalos que hoje sufocam laboratórios e servidores possam comprometer a nova fase de expansão, porque para isso mais segurança, energia elétrica e contratos de gestão serão necessários. E tudo isso exige dinheiro. “Se não houver uma recomposição do orçamento, isso pode ficar inviabilizado. Então apesar de a gente ter um recurso para construir o prédio, para reformar o pavilhão Mário de Almeida, etc., não teremos recurso para gerir a função que nos foi designada.”
Há quem discorde de educadores como Paulo Freire para quem o desenvolvimento de um País se dá pela cultura, não exatamente pela ciência. Isso porque a decisão de desenvolver a educação, a arte e a ciência necessárias para estimular um voo de cruzeiro parte do arcabouço de uma cultura que muitos políticos do País perderam, inclusive, a vergonha de revelar que esse pensamento não lhes interessa.
Assista à entrevista no canal da SBF no YouTube
(Colaborou Roger Marzochi)