O que acontece no limite em que o caos encontra a gravidade quântica? A pergunta parece saída de um paradoxo, mas foi justamente essa fronteira que o físico Joaquim Telles de Miranda, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), e seu orientador, Tobias Micklitz, decidiram explorar no artigo Universality Class of the First Levels in Low-Dimensional Gravity,publicado na Physical Review Letters em 15 de setembro.
A pesquisa mostra que, mesmo em meio à aleatoriedade extrema dos sistemas quânticos, há uma região de estabilidade, um tipo de “caos comportado”, como descreve Miranda. “O que a gente fez nesse trabalho foi estudar sistemas bem perto do estado fundamental, então, baixíssimas energias. A gente diz que está na borda do espectro de energia, e aí esses sistemas são interessantes em outros cenários”, explica Miranda, em entrevista ao Boletim SBF.
De acordo com Miranda, essa borda é onde os níveis de energia mais baixos em um sistema quântico complexo, aqueles logo acima do solo quântico, mostram um comportamento diferente: “É uma dinâmica caótica, mas um pouco mais vinculada, com mais restrições, um pouco mais comportada.”


O resultado surpreende porque a física do caos quântico costuma se concentrar nos estados excitados, que ocupam o meio do espectro de energia e se comportam de modo imprevisível. “O que a gente observou é diferente desse caos que a gente costuma observar no meio do espectro”, explica o pesquisador. “Vamos dizer assim, robustamente diferente.” Essa rigidez é descrita pela equipe como uma classe de universalidade dos primeiros níveis (Universality Class of the First Levels, ou UFL). “Quando a gente fala de mecânica estatística”, explica Miranda, “a gente quer fazer tradições que sejam universais, que valham para vários sistemas.”
De acordo com ele, normalmente os estados próximos ao nível fundamental “costumam depender de detalhes microscópicos do modelo”. Mas o grupo demonstrou que, “na verdade, tem assinaturas na borda da densidade espectral que têm um grau de universalidade, que podem ser observadas em diferentes modelos”.
Entre esses modelos está a chamada gravidade de Jackiw-Teitelboim (JT), uma teoria bidimensional que funciona como laboratório para investigar a gravidade quântica. “É um modelo bidimensional de gravidade que é bem paradigmático, embora seja totalmente topológico, pois ele não tem gravitons propagando”, explica.
De acordo com Miranda, mesmo assim o modelo “tem buracos negros, tem uma entropia de Bekenstein-Hawking e permite uma descrição quântica, à la Feynman, em termos de integrais de caminho sobre todas as geometrias, ou, nesse caso, sobre topologias”. Por isso, continua ele, é “uma teoria bem fértil para explorar o cenário da gravidade quântica”, onde é possível compreender como o caos e a gravidade se conectam “numa versão simplificada do Universo”.
Outra peça importante é a teoria de Kodaira-Spencer, que aproxima a mecânica quântica da geometria do espaço-tempo. De acordo com Miranda, essa é “uma ideia ambiciosa da teoria das cordas”. A filosofia seria você pensar na gravidade como uma teoria efetiva a baixas energias que pode ser estendida para um espectro de energia maior, que a gente chama de ultravioleta.”
Segundo ele, “através de uma completeza ultravioleta, você faz uma descrição microscópica mais detalhada, em termos de cordas. A soma sobre topologias na gravidade de Jackiw-Teiltelboim pode ser reinterpretada como processos de espalhamento de cordas. Uma corda fechada que se propaga traça uma superfície, e, em processos de espalhamento, essas superfícies podem se combinar e gerar topologias diferentes – justamente aquelas que são somadas na integral de caminho. Curiosamente, a partir desta teoria ultravioleta, obtém-se, via coarse graining, uma média sobre um conjunto efetivo – uma estrutura que se mostra importante para a interpretação da dualidade holográfica”, conclui.
O trabalho também faz uma distinção essencial entre sistemas densos e esparsos. “A gente quer classificar a nossa dinâmica em grandes guarda-chuvas de universalidade”, diz Miranda. De acordo com ele, sistemas densos são aqueles “com muitos parâmetros, muitos graus de liberdade que a gente pode regular”. Essa abundância de variáveis “restringe o sistema e dá origem a esse comportamento na borda da densidade espectral, esse caos mais estável, ‘mais comportado’”. Já nos sistemas esparsos, explica, há “um número pequeno de parâmetros, de vínculos, de restrições, e isso faz com que a gente perca essa assinatura do caos comportado na borda do estado”.
Entre os exemplos estudados estão matrizes aleatórias, amplamente usadas para modelar sistemas quânticos, e também o modelo Sachdev-Ye-Kitaev (SYK), um laboratório teórico para o caos quântico. “Em contrapartida ao sistema denso”, comenta Miranda, “o SYK é dito esparso, porque não tem esse número extensivo de parâmetros. A gente pode pensar nele como um conjunto de partículas que interagem entre quatro partículas só.”
Mas por que essa “camada de rigidez” importa? Miranda reconhece que o trabalho tem caráter fundamental: “Em termos de aplicações concretas, se vai fazer uma tecnologia nova, claramente não é o caso.” De acordo com ele, o valor está em compreender como a informação se organiza no caos quântico e em abrir novas pistas para a gravidade quântica.
“A ideia seria, a partir dessas correspondências holográficas, conseguir fazer previsões ou entender melhor estados microscópicos de buracos negros, que podem trazer novas ideias e perspectivas”, afirma. “Por outro lado, buscamos contribuir, de alguma forma, para esse campo de pesquisa em gravitação quântica. Esperamos que esse entendimento possa acrescentar algo relevante nessa direção.”
Ao revelar uma estrutura universal na borda do caos, o estudo de Joaquim Telles de Miranda e Tobias Micklitz adiciona uma nova camada de ordem à física contemporânea, uma música sutil de estabilidade tocando nas franjas da desordem, onde o espaço-tempo parece ainda improvisar.
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(Colaborou Roger Marzochi)