Quando você acende uma lâmpada em casa, a luz parece vir de maneira contínua, uniforme, como um fluxo constante, falhando só quando há problemas na rede de transmissão de energia ou falhas em interruptores. Porém, a intensidade sempre flutua. A luz, que se comporta como onda ou como partícula, tem ainda mais mistérios. Se a gente pudesse olhar bem de perto, em escala quântica, veria que essa luz é feita de pequenos pacotes chamados fótons, que chegam de forma mais ou menos caótica, muitas vezes em grupos, sem um padrão rígido. Agora imagine se fosse possível controlar não só a quantidade de luz, mas também o jeito como esses fótons se organizam e se dispersam no tempo.

É justamente esse tipo de controle que o artigo Coherent Control of Photon Correlations in Trapped Ion Crystals, publicado na Physical Review Letters (PRL) conseguiu desvendar. Os cientistas e professores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Romain Bachelard e André Cidrim, em parceria com pesquisadores da República Tcheca, mostraram que, em cadeias de íons de cálcio aprisionados, dá para manipular o padrão de emissão da luz por meio da interferência entre o espalhamento coerente e a emissão espontânea.

Quando a luz está mais intensa, os fótons se distribuem de forma mais espaçada no tempo; quando a intensidade diminui, eles se agrupam. Essa anticorrelação foi observada em sistemas com até 18 íons. A experiência foi realizada na República Tcheca, em uma colaboração internacional impulsionada pela curiosidade matemática de Cidrim e Bachelard. O trabalho foi realizado com apoio da FAPESP, CNPq, fundações tchecas e europeias.

“A gente não esperava muita física interessante em um sistema de átomos que não interagem”, explica Bachelard, que nasceu na França, completou sua graduação em Física e mestrado em Didática e História da Ciência (Université de Lyon, 2004), Física Teórica (Université Aix-Marseille, 2005), doutorado em Física (Universite Aix-Marseille, 2008) e está há 14 anos no Brasil.

“O Romain me pediu para fazer uma conta considerando que os íons, como a gente considera no experimento que foi feito pelo Lukas Slodicka, na República Tcheca, não estavam interagindo (exceto pela repulsão Coulombiana, que ajuda a gerar um cristal de íons imóveis). Na época eu pensei: ‘mas o que tem de interessante nisso?’”, conta Cidrim, que fez a graduação e o Mestrado em Física no Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), doutorado no Instituto de Física da USP em São Carlos (IFSC), (2017). “Vamos fazer a conta e descobrir! E aí realmente a gente tinha uma expressão e começamos a perceber ser possível criar esse controle da estatística da luz, mesmo com os átomos não interagindo entre eles. A motivação inicialmente foi puramente teórica, de olhar uma equação e ver o que ela estava nos dizendo”, explica Cidrim, especialista em fenômenos quânticos macroscópicos e dissipação quântica.

Bachelard conta que não há nada em especial em se usar o cálcio no experimento, porque o mesmo tipo de efeito poderia ser verificado com outros emissores quânticos, como pontos quânticos, átomos frios, moléculas ou elementos da família dos “emissores quânticos”. “Talvez no futuro, nós possamos descobrir que o uso de pontos quânticos, e não íons, têm mais potencial na direção de tecnologia quântica”, explica o cientista, que atua desde 2017 como Professor Adjunto no Departamento de Física da UFSCar.

Fontes caóticas, como lâmpadas, tendem a agrupar fótons. Já fontes quânticas, como emissores de fótons únicos, produzem fótons mais espaçados entre si, um fenômeno chamado “antibunching”. Lasers, por sua vez, emitem fótons sem correlação entre eles. Para investigar isso, os pesquisadores usaram uma armadilha de Paul linear e colocaram íons de cálcio alinhados, entre 2 e 18 íons por vez. Com lasers de 397 nanômetros, eles estimularam a emissão de luz por esses íons e registraram tanto a intensidade quanto o comportamento dos fótons.

O cientista francês lembra que a luz do Sol ou da lâmpada de casa são exemplos clássicos de fonte de luz, distribuem fótons de forma agrupada. Mas, para a ótica quântica, ter controle do agrupamento de fótons tem importante impacto tecnológico, como, por exemplo, no processo de criptografia quântica. “E o nosso resultado é esse: pegamos grandes sistemas de emissores quânticos, e se eles são bem resfriados, quase não se deslocam, temos certas direções onde os fótons virão antiagrupados, coincidindo com as direções onde há mais intensidade, o que é de fato um pouco contraintuitivo, porque a gente esperaria ter muita luz, mas é o contrário.”

O comportamento dos fótons foi medido na pesquisa por meio de uma função de correlação de segunda ordem denominada g(2). Ela serve para saber se ao menos dois fótons estão chegando juntos, separados, ou com algum padrão. Esse tipo de medição, chamada de autocorrelação de segunda ordem, é o que permite identificar se uma fonte de luz é caótica, coerente ou se está emitindo fótons únicos.

Cidrim explica que a ideia é que essa função matemática, que mede a chance de se observar pares de fótons, pode ser generalizada para se medir a coincidência de “m” fótons, g(m), algo que agora buscam compreender. “Apesar da dificuldade experimental de se medir esse g(m), podemos ganhar ainda mais informação sobre a natureza da luz espalhada por esses emissores, com potencial impacto para áreas da computação quântica com íons e fótons.”

Os íons foram mantidos a distâncias de alguns micrômetros uns dos outros, o suficiente para garantir que cada um emitisse de forma independente, mas ainda assim próximos o bastante para que a interferência entre eles acontecesse. A distância entre os íons foi ajustada para mudar o padrão de interferência da intensidade, variando de destrutiva (quando a luz se cancela) a construtiva (quando ela se soma).

A coleta da luz foi feita com dois detectores sensíveis a fótons únicos, em um sistema conhecido como Hanbury Brown–Twiss, que permite medir a função g(2) com base no tempo de chegada dos fótons. Nos experimentos com quatro íons, foi possível observar claramente a transição entre antibunching (fótons mais espaçados) e superbunching (fótons chegando agrupados mais do que o normal). E quando o número de íons aumentou para até 18, ainda foi possível ver padrões semelhantes, desde que a potência do laser fosse mantida baixa.

Em cadeias maiores de íons, a sensibilidade à temperatura e ao movimento aumenta, prejudicando o experimento. Isso pode desfocar os padrões de interferência e fazer com que a luz volte a se comportar como luz comum, com estatísticas caóticas. Mas Bachelard explica que isso ocorre pelo fato de existir limitações nos equipamentos criados até hoje para realizar o processo de resfriamento do material, algo que, no futuro, pode ser aprimorado.

“O que está por trás de escalar o sistema, por exemplo, são as limitações dessas plataformas de íons aprisionados para computação quântica. Claro que aqui não é o nosso enfoque, nosso enfoque é a física fundamental, mas à medida que você aumenta o tamanho do sistema, assim que você ilumina os átomos, os íons, eles conversam entre si. Isso porque eles têm uma interação de carga-carga”, reforça Cidrim. “Uma vez que você perturba um pouco localmente um dos íons, eles começam a se mexer. Cada vez mais, quando você escala o sistema, você tem mais modos possíveis, mais formas desses íons vibrarem. Então, é muito mais fácil você, de certa forma, esquentá-los. Isso também está por trás da limitação do porquê que você não pode ter ainda um computador quântico funcionando com centenas e milhares de íons.” Os cientistas da UFSCar buscam agora ampliar a detecção dos fótons, em conversas com parceiros da Alemanha, com o objetivo de expandir essa mesma pesquisa, que já gerou resultados surpreendentes. Bachelard e Cidrim avaliam como primordial o diálogo com pesquisadores de diferentes países nesse processo. “Se eu converso só com as pessoas de determinado lugar, as ideias ficam limitadas. É importante viajar, conversar com outras pessoas, porque isso nos estimula muito. O recado que eu quero passar é: trabalhar com pessoas diferentes pode estimular novas ideias”, diz o cientista francês. Que a luz desse impulso criativo continue sua busca de clarear as sombras do que a humanidade ainda não sabe sobre a própria luz, a fim de desenvolver novas tecnologias que colaborem para o nosso desenvolvimento.

Assista à entrevista completa

(Colaborou Roger Marzochi)

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