Pesquisadores do Departamento de Física da Universidade de São Paulo (USP) realizaram um estudo que quebra uma regra antiga da física dos materiais: pela primeira vez, ficou claro que o choque entre elétrons, que antes se acreditava irrelevante para a resistividade elétrica em sistemas bidimensionais, tem um papel decisivo em materiais de Dirac, como o grafeno e o poço quântico de Telureto de Mercúrio. O artigo Resistivity of Non-Galilean-Invariant Two-Dimensional Dirac Systems pode colaborar para mudar a compreensão sobre como os elétrons fluem nesses materiais, abrindo novas perspectivas e desafios para a nanotecnologia, a computação quântica e a eletrônica do futuro.
“Há uma ‘nova regra do jogo’ que tem que ser considerada na construção de novos dispositivos (eletrônicos)”, explica Gennady Gusev, cientista russo estabelecido no Brasil desde 1998, é professor do Departamento de Física de Materiais e Mecânica da USP (IFUSP) e um dos autores do estudo, que contou com a colaboração do Institute of Semiconductor Physics de Novosibirsk e da Novosibirsk State Technical University, ambos na Rússia. Os professores Alexandre Levine e Valmir Chitta, também do IFUSP, participaram da pesquisa.

Ao dizer que há uma “nova regra no jogo”, Gusev se referiu à toda a evolução dos sistemas eletrônicos que utilizamos hoje em dia, baseado no transporte de carga por meio de elétrons em fios e chips de computadores, celulares e outros equipamentos que, segundo o cientista, estão chegando ao seu limite. Os smartphones, computadores e dispositivos que usamos hoje são incrivelmente poderosos – mas essa revolução tecnológica está prestes a dar um salto ainda maior. Mas a tecnologia por trás deles, baseada principalmente no silício, está chegando a um limite. Para continuarmos avançando, para termos dispositivos ainda menores, mais rápidos e com menor consumo de energia, precisamos de novos materiais e novas ideias”, escreve Gusev, em pré-entrevista sobre a pauta. “Nossa pesquisa ajuda a mapear e entender essas novas ‘regras do jogo’ eletrônico, que são essenciais para construir a próxima geração de tecnologias.”
Nos materiais condutores de corrente elétrica usados hoje, os elétrons enfrentam barreiras para se “movimentarem” até entregar a energia necessária. Há a resistência elétrica, causada por motivos externos ao material e ao seu comprimento, e a resistividade, que é uma característica intrínseca do material. Imagine que você está andando de bicicleta em uma estrada bem asfaltada, lisinha, sem vento e sem subidas. Se ninguém te atrapalhar e se o fôlego for suficiente, você pode pedalar e manter a mesma velocidade, certo?

É assim que a física clássica, ou mais precisamente, a chamada “Invariância de Galileu”, descreve o movimento. Em linhas simples, se não houver forças externas, o movimento continua sem mudanças. O mundo funciona igual se você estiver parado ou se movendo numa velocidade constante. As leis da física não se importam com isso.
Agora, pense nos elétrons dentro de um fio como ciclistas pedalando por essa estrada. Segundo Modelo de Drude, o que faz esses ciclistas perderem velocidade não é o vento, nem a fadiga, mas sim os buracos na estrada e as pedras no caminho — ou seja, as impurezas e defeitos do material. Cada vez que um elétron encontra um obstáculo, ele perde um pouco de seu movimento, e isso gera a resistência elétrica que conhecemos.
Nos materiais convencionais, como o silício, os elétrons seguem uma regra específica de movimento que os cientistas chamam de “espectro parabólico”. Isso quer dizer que a relação entre a energia do elétron e seu momento, uma espécie de “quantidade de movimento”, forma uma parábola. E aqui entra a mágica da física clássica: quando dois elétrons se chocam, as leis da conservação de energia e de momento são rigorosamente respeitadas. Só que, por conta dessa relação parabólica, essas colisões internas não mudam o movimento coletivo dos elétrons como um todo. É como se dois ciclistas, ao baterem guidão com guidão, redistribuíssem a energia entre eles, mas sem afetar a velocidade média do grupo que está pedalando na mesma direção. O fluxo segue praticamente igual.
Essa propriedade de os elétrons conservarem o momento coletivo nas colisões entre si está profundamente ligada à “Invariância de Galileu”, que basicamente afirma que o espaço não distingue se você está em repouso ou se movendo com velocidade constante. No universo desse modelo, as colisões entre elétrons são invisíveis para o movimento global: elas só fazem sentido do ponto de vista microscópico, na dança individual das partículas.
É exatamente esse o ponto que os cientistas da USP e pesquisadores russos revelaram, um novo segredo da natureza: em materiais bidimensionais, como o grafeno e o telureto de mercúrio (HgTe), o choque entre os próprios elétrons, de fato, gera alteração na resistividade, com uma profunda ligação com a temperatura. “Nesses materiais, os elétrons se comportam como ‘partículas de Dirac’ e têm um espectro de energia linear. A relação entre energia e momento não é uma parábola, mas uma linha reta – assim como para as partículas de luz (fótons)”, explica Gusev.
“Essa mudança aparentemente simples na ‘regra’ de energia-momento tem consequências profundas. As leis de conservação de energia e momento ainda se aplicam, claro. No entanto, a maneira como o momento é trocado nas colisões e-e (eletrón-elétron) em um sistema com espectro linear é diferente. As colisões e-e agora contribuem para a resistividade! O sistema não é mais ‘Invariante de Galileu’ da mesma forma. As interações entre os elétrons, que são muito fortes, agora podem efetivamente degradar o fluxo total de corrente. É como se, nesses materiais, as colisões entre os elétrons pudessem criar um tipo de ‘atrito interno’ ou ‘viscosidade’ no fluido eletrônico, que dissipa o momento e gera resistência.”
Os dados experimentais foram obtidos em laboratórios na Rússia a partir do HgTe e analisados de forma colaborativa com os professores do IFUSP. “Se quisermos usar materiais como o grafeno ou os poços quânticos de HgTe para substituir o silício em futuros dispositivos nanoeletrônicos, precisamos entender profundamente como seus elétrons se comportam. Não podemos simplesmente aplicar as velhas regras do silício. Esse comportamento ‘hidrodinâmico’ dos elétrons, onde eles fluem mais como um líquido e suas interações internas são cruciais, abre portas para projetar dispositivos com funcionalidades completamente novas, potencialmente muito mais rápidos ou eficientes”, afirma Gusev. Essa pesquisa representa uma importante colaboração internacional, que pode ajudar o Brasil a se colocar no cenário global como desenvolvedor da nova geração de tecnologias, com potencial para gerar avanços econômicos e sociais.
Assista à entrevista completa no canal do YouTube da SBF
(Colaborou Roger Marzochi)