Imagine colocar um copo de água sobre a mesa. A gente toma por certo que aquele líquido transparente molha, ferve a 100 °C e congela a 0 °C à pressão ambiente porque “água é água”. Na prática, essas propriedades derivam de algo bem mais profundo: a combinação específica de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, o ângulo entre eles, a distribuição dos elétrons e as forças quânticas que mantêm tudo coeso. Troque um único detalhe, por exemplo. Acrescente um nêutron ao oxigênio, mude ligeiramente o ângulo da molécula e o ponto de fusão já se desloca, as ligações de hidrogênio se reorganizam, o gelo não flutua mais.

Do mesmo modo, a mecânica quântica parece “ser como é” por causa de um arcabouço invisível que põe limites rígidos ao que pode ou não pode acontecer entre partículas. É nesse esqueleto da realidade que entra o princípio da exclusividade, elemento central de um novo trabalho de Carlos Vieira, José Nogueira e Marcelo Terra Cunha, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O artigo Unexpected consequences of postquantum theories in the graph-theoretical approach to correlations , que foi publicado na Physical Review Letters no dia 9 de maio e repercutido pela revista New Scientist no dia 6 de maio, busca comprovar, com rigor matemático, que o princípio da exclusividade pode explicar por que as correlações quânticas se comportam da forma como se comportam. Se esse estudo estiver correto, a teoria quântica não é apenas a descrição que tivemos a sorte de formular primeiro; ela seria a única possível, dadas as regras de exclusão que a própria natureza impõe às medições. Tal qual a estrutura molecular obriga a água a ser água, o princípio da exclusividade obrigaria a física a ser… quântica.

“Estamos tocando a pergunta que, de certa forma, explica por que a teoria quântica é como é”, diz Vieira em entrevista à física Karmela Padavic-Callaghan, divulgadora científica da New Scientist. Na reportagem, Karmela explica que as conexões entre objetos quânticos, como no entrelaçamento, são as mais intensas que os físicos já detectaram. A equipe da Unicamp conseguiu, a partir desse artigo uma explicação matematicamente rigorosa para essa correlação extrema e os seus limites.

Objetos quânticos podem ser correlacionados de maneira tão intensa que a medição de um revela propriedades do outro, mesmo quando estão separados por grandes distâncias. Essa característica é conhecida como entrelaçamento quântico. Mas o entrelaçamento é apenas uma das formas possíveis de correlação no mundo quântico. Existem várias outras que também desafiam a lógica clássica.

Em sistemas clássicos, objetos também podem estar correlacionados, isto é, ter propriedades relacionadas, mas nunca com a intensidade que se observa no domínio quântico. Ainda assim, as correlações quânticas não são infinitas. Elas têm um limite, e esse limite nunca foi ultrapassado em nenhum experimento, explica a reportagem da New Scientist. A equipe da Unicamp buscou entender por que essas correlações não podem ser ainda mais fortes. Ou, como coloca Nogueira, “por que correlações mais fortes do que as quânticas nunca foram registradas em laboratório”.

A resposta que eles encontraram está no chamado princípio da exclusividade. Esse princípio parte da ideia de que, se uma coleção de propriedades se mostra duas a duas excludentes, então elas devem ser coletivamente excludentes.  Esse princípio, em conjunto com a matemática da teoria de grafos, permite concluir que experimentos independentes podem sim impor restrições uns aos outros.

Um grafo, de forma simples, é uma representação formada por pontos (vértices) e conexões entre esses pontos (arestas). No contexto do estudo, cada vértice representa os resultados de um conjunto de medições em um sistema físico, e as conexões mostram quais desses resultados de medições se excluem mutuamente. A partir de teoremas da teoria de grafos, a equipe conseguiu demonstrar matematicamente que o princípio da exclusividade pode, de fato, explicar por que as correlações quânticas se comportam da forma como se comportam.

Andreas Winter, da Universidade Autônoma de Barcelona, afirma à New Scientist que o resultado se apoia em um trabalho anterior de Marcelo Terra Cunha, da brasileira Bárbara Amaral e do físico espanhol Adán Cabello, publicado em 2014. “Se as observações estatísticas previstas pela mecânica quântica são todas realizadas — e assumindo um axioma físico adicional, o princípio da exclusividade — então todas as observações estatísticas que ocorrem na natureza são explicadas pela mecânica quântica”, diz Winter à New Scientist. “Esse é realmente um resultado brutal. A mecânica quântica produz um conjunto muito específico e detalhado de assinaturas. Se você encontra uma forma de reproduzir isso, está tocando os ossos da teoria, está entendendo como a natureza opera para produzir aquilo”, diz Cabello.

Segundo a reportagem da New Scientist, há argumentos matemáticos adicionais indicando que o princípio da exclusividade pode ser uma característica de qualquer teoria realista de como são feitas as medições. Caso isso se confirme, a teoria quântica poderia ser vista não apenas como uma entre várias possibilidades de descrever o mundo, mas como uma consequência inevitável. Sendo assim, o próprio princípio da exclusividade se tornaria uma lei física. Terra Cunha demonstrou à reportagem da New Science grande otimismo na comprovação da teoria proposta pela equipe da Unicamp, avaliando que experimentos com luz quântica e outras técnicas recentes ajudarão a levar essa hipótese ao centro das discussões sobre os fundamentos da física.

(SBF com informações da New Scientist)