Além de combater o aquecimento global, a busca por novas formas de energia é também uma resposta a um problema prático e iminente: o esgotamento dos combustíveis fósseis. Estimativas indicam que as reservas globais de petróleo e gás natural podem acabar antes de 2070. Como muitas economias ainda dependem desses recursos, cresce a preocupação com a segurança energética global. Nesse contexto, o hidrogênio desponta como uma alternativa estratégica, mas ainda enfrenta barreiras para seu uso em larga escala, especialmente no que diz respeito ao armazenamento seguro, eficiente e barato.
Um estudo publicado em março de 2025 na revista ACS Nano, com a liderança de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e colaboração de pesquisadores dos Estados Unidos e da Espanha, traz novas pistas sobre como superar esse desafio. A equipe investigou o comportamento de nanopartículas formadas por paládio (Pd) e óxido de níquel (NiO), analisando suas transformações em nível atômico durante o processo de armazenamento de hidrogênio.
A pesquisa é fruto de uma colaboração de longa data entre o professor Fabiano Bernardi e seus orientandos Alisson Thill e Lívia P. Matte, primeira autora do artigo e hoje pós-doutoranda no Lawrence Berkeley National Laboratory, nos Estados Unidos. “Esse trabalho é especial porque culmina anos de parceria. Começamos com a iniciação científica, seguimos pelo mestrado, doutorado e agora pelo pós-doc. É muito gratificante ver um resultado tão sólido emergindo dessa trajetória conjunta”, conta Bernardi.



O hidrogênio é o elemento mais leve e abundante do universo. Pode ser obtido a partir de fontes renováveis, e seu uso em células a combustível gera apenas água como subproduto, ao contrário da queima de gasolina ou diesel, que libera grandes quantidades de dióxido de carbono. Além disso, sua densidade gravimétrica (relação entre energia e massa armazenada) é cerca de três vezes maior que a da gasolina, o que o torna uma opção atraente para o setor de transportes.
“Cada grama de hidrogênio armazena três vezes mais energia que a gasolina”, explica Bernardi. “Mas como é um gás, ele ocupa muito volume e tem densidade volumétrica baixa. Para uso em veículos leves, isso se torna um problema. Já o hidrogênio líquido requer temperaturas criogênicas, que encarecem e dificultam a operação. Por isso, o armazenamento em materiais sólidos, como nanopartículas, é uma alternativa interessante.”
Adsorção ou absorção?
Na adsorção, o hidrogênio se fixa na superfície do material, como uma película aderindo a uma esponja. Já na absorção, ele penetra no interior da estrutura, formando ligações mais profundas. Segundo a pesquisadora Lívia Matte, “nesta pesquisa, o hidrogênio é absorvido pelos átomos de paládio no centro das nanopartículas”. “Isso é crucial para que ele permaneça retido em temperatura ambiente e só seja liberado quando necessário”, explica Livia.
Esse ponto é essencial: “o Departamento de Energia dos Estados Unidos (DOE) define que os sistemas de armazenamento de hidrogênio devem operar entre –40 °C e +60 °C para serem economicamente viáveis”, explica Bernardi. “Estudos como o nosso, que funcionam em temperatura ambiente, são fundamentais para atender a essa exigência.”
Núcleo de paládio, casca de níquel
Para alcançar o resultado obtido pelos cientistas brasileiros, foram usadas nanopartículas, que formavam uma estrutura de “núcleo-casca”: um centro rico em paládio envolto por uma camada de óxido de níquel. A ideia surgiu de pesquisas anteriores feitas no doutorado de Alisson Thill, em que o NiO já mostrava potencial para reduzir a temperatura necessária à liberação do hidrogênio. “A gente pensou: e se combinarmos o paládio, que armazena bem, com o óxido de níquel, que facilita a liberação? A ideia era criar uma sinergia entre os dois”, diz Thill.
Essa combinação resultou em uma descoberta inesperada. O núcleo de paládio se fragmenta em pequenas bolsas internas, chamadas de nanopockets, durante o contato com o hidrogênio. Isso aumenta a área disponível para armazenamento. “O truque é que o NiO força o núcleo único de paládio a se dividir em vários bolsões. Assim, a interface paládio-níquel se multiplica, e mais hidrogênio pode ser absorvido”, explica Bernardi.
E o mais interessante: não é necessário usar grandes quantidades de paládio. “Com apenas 25% de paládio nas nanopartículas, conseguimos desempenho comparável ao do paládio puro”, destaca o professor. “Isso barateia muito o processo, já que o Pd é um metal caro.”
Outra vantagem do armazenamento sólido é a segurança. Thill lembra que um cilindro tradicional de hidrogênio, com cerca de 50 litros sob alta pressão, armazena apenas 700 gramas do gás. “É muito pouco, considerando o tamanho e o risco. Nosso material é um pó sólido que tem uma perspectiva promissora de armazenar mais hidrogênio por massa, com menor risco em caso de acidente, pois o gás não está comprimido, mas absorvido no material.”
Segundo ele, “esse estudo apresenta uma forma inédita de melhorar o armazenamento de hidrogênio”. “É um passo importante rumo à meta do DOE, que busca alternativas competitivas aos cilindros de alta pressão”, afirma.
Técnicas e descobertas
Para acompanhar as transformações das nanopartículas, a equipe usou técnicas avançadas de raios X e microscopia eletrônica. A espectroscopia de absorção de raios X in situ (XAS) permitiu observar mudanças atômicas durante a absorção do hidrogênio. Já a espectroscopia de fotoelétrons excitados por raios x em pressão ambiente (AP-XPS) mostrou alterações químicas na superfície. Técnicas como espalhamento de raios x com incidência em ângulo rasante em pressão ambiente (AP-GIXS) e espectroscopia de perda de energia de elétrons (EELS) revelaram mudanças estruturais e morfológicas detalhadas.
“Essas ferramentas mostraram que conseguimos interromper o processo de fragmentação do paládio no momento certo, criando os bolsões e otimizando o armazenamento”, explica Bernardi. “Pode ser que estejamos diante do início de um processo de migração atômica do paládio para a superfície, mas isso ainda precisa ser mais investigado.”
Embora ainda seja um passo dentro de um percurso mais longo, o trabalho da equipe da UFRGS contribui para o avanço no uso do hidrogênio como vetor de energia. A combinação entre paládio e óxido de níquel, aliada a técnicas de caracterização em tempo real, abre caminho para novos materiais mais baratos e eficazes.
Aos poucos, compreender como o hidrogênio se comporta dentro de estruturas em escala nanométrica pode ajudar a superar um dos maiores gargalos da transição energética: o armazenamento. Mais do que um avanço pontual, o estudo indica que soluções tecnológicas viáveis podem surgir quando conhecimento acumulado, paciência e colaboração científica se encontram. Nesse cenário em constante transformação, entender o que acontece dentro de uma única nanopartícula talvez seja mesmo parte essencial para reconfigurar o futuro da energia.
Assista à entrevista com os pesquisadores
(Colaborou Roger Marzochi)