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Duzentas mil composições, em diversas pressões, foram testadas em todo o sistema Lu-H-N, como mostrado na parte superior esquerda; a figura do lado direito mostra uma comparação com a temperatura crítica de diversos outros compostos. Embaixo estão as estruturas cristalinas e as densidades eletrônicas de algumas das centenas de milhares de compostos calculados

Pesquisadores da Escola de Engenharia de Lorena trabalharam em cooperação com cientistas da Áustria, Itália e Grã-Bretanha que prova que estudo de professor da Universidade de Rochester está equivocado

Imagine um material condutor de eletricidade que, ao ser usado em condições ambientes de pressão e temperatura, solucionaria os desafios que enfrentamos para combater o aquecimento global, transmitindo energia sem perdas, possibilitando trens levitarem como se estivessem voando, computação quântica plena e uma evolução sem precedentes na medicina. Para tudo isso, o jovem professor Ranga Dias, da Universidade de Rochester, nos Estados Unidos, apresentou um sólido que se encaixaria nos mais elevados sonhos da humanidade em busca da supercondutividade em artigo científico na tão sonhada revista Nature, em março deste ano.

Só que não… Laboratórios ao redor do mundo buscaram checar os cálculos e fazer as experiências feitas no laboratório da universidade norte-americana e chegaram a um impasse principal: Dias se precipitou em suas contas ou, na pior das hipóteses, teria agido de má fé. Pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Materiais da Escola de Engenharia de Lorena (EEL), da Universidade de São Paulo (USP), trabalharam em cooperação com cientistas da Áustria (Graz), Itália (Roma) e Grã-Bretanha (Cambridge) e conseguiram comprovar, ao menos, que a pesquisa de Dias não tem o mínimo fundamento.

“Não há chance de o Ranga Dias ser ‘O Homem que viu o infinito’. Os nossos cálculos mostram que não é possível. Na melhor das hipóteses, foi erro dele, uma análise precipitada”, afirma o professor da EEL Luiz Tadeu Fernandes Eleno, fazendo uma referência ao filme do diretor Matthew Brown sobre o indiano Srinivasa Ramanujan, o gênio autodidata da matemática que assombrou o rigor acadêmico da Universidade de Cambridge ao fazer cálculos que contribuíram com a série infinita inspirado simplesmente por uma deusa hindu. Dias é do Sri Lanka, foi eleito pela revista Time em 2021 como uma das cem personalidades que definiriam o futuro da humanidade, e ele se nega a se retratar.

Mas qual é o grande escândalo da pesquisa de Dias? A supercondutividade é a capacidade de os elétrons transmitirem energia sem qualquer resistência. Isso ocorre porque os elétrons formam pares especiais, chamados de “pares de Cooper”, que se movem de forma coordenada e sem colidir com as vibrações do cristal, o que elimina a dissipação de energia na forma de calor. Essa propriedade foi descoberta em 1911 pelo cientista holandês Heike Kamerlingh Onnes, que realizou experimentos com mercúrio a temperaturas extremamente baixas, de -269 Cº. Por essa descoberta, Onnes venceu o Prêmio Nobel de Física em 1913.

E porque há resistência nos materiais que conhecemos? Em fios de cobre, por exemplo, há elétrons que se chocam com núcleos do material, uma das explicações do porquê fios elétricos esquentam. Para se alcançar a supercondutividade, os cientistas aplicam temperaturas negativas a materiais, como híbridos de cerâmica, por exemplo. O gasto de energia para manter as temperaturas negativas são um empecilho ao desenvolvimento de aplicações com esses materiais. E para conseguir se aproximar da temperatura ambiente, a pressão seria tão descomunal que não seria praticável.

Em 2015, um grupo liderado pelo cientista ucraniano Mikhael Eremets obteve evidências de que o hidrogênio, quando altamente pressurizado, gera um metal que poderia exibir propriedades de supercondutividade a temperatura de –70 Cº que, embora negativa, era mais altas que o normal. No entanto, a pressão deveria ser tão alta, cerca da metade da pressão do núcleo terrestre, que sua reprodução seria inviável. Eleno explica que, no entanto, pesquisas foram inspiradas em associar o hidrogênio a vários elementos que, na cozinha dos laboratórios, foram sendo testados na busca do elixir da supercondutividade.

Em seu artigo científico, Ranga Dias realizou experiências com o elemento químico lutécio, o mais raro das terras raras, associado com nitrogênio e hidrogênio. Dessa mistura, resultaria um material supercondutor a temperatura ambiente, de cerca de 20 Cº, e pressão ambiente. “Todos os grupos experimentais começam a tentar reproduzir e fazer as contas para ver se tem sentido, da China aos Estados Unidos. E ninguém conseguiu. Há problemas conceituais difíceis de refutar. Nem o Dias sabe a quantidade de hidrogênio e nitrogênio no composto e nem o arranjo atômico do sólido. Isso não está no artigo”, explica Eleno.

Logo após o anúncio do artigo na Nature, Eleno também buscou checar os dados. O seu aluno de doutorado Pedro Pires Ferreira à época estava, justamente, em uma colaboração sanduíche na Universidade Técnica de Graz (TU-Graz), na Áustria, sob a co-supervisão do professor Christoph Heil. Ferreira foi orientado a pausar o seu projeto de pesquisa para mergulhar nos cálculos soltos ao vento por Ranga Dias. A equipe trabalhou meses, usando um amplo sistema computacional que analisou 200 mil combinações de temperatura, pressão e dosagem de lutécio, nitrogênio e hidrogênio. Os resultados foram publicados em setembro na Nature Communications no artigo “Search for ambient superconductivity in the Lu-N-H system”. 

“A combinação que apresentou melhor resultado na pressão ambiente precisaria estar na temperatura de -230 Cº, muito longe dos 20 Cº proposto por Dias. Se realmente a gente encontrasse um supercondutor em condições ambientes salvaríamos o Ranga Dias, mas não deu. A gente afirmou categoricamente que está descartado um composto com as características propostas. E está agora na literatura”, afirma Eleno. O Boletim da SBF enviou pedido de informações a Ranga Dias por e-mail, mas não obteve retorno até o momento. 

Apesar de 8 dos 11 cientistas que assinaram com Ranga Dias o artigo terem pedido retratação da Nature, acusando o professor de manipulação de dados, o texto continua no site da revista. Eleno avalia que retirar o artigo talvez só ocorreria se houvesse comprovação de fraude. Mas avalia que a publicação se precipitou em publicar uma pesquisa dessa magnitude, com as afirmações que foram feitas, sem uma ampla checagem. “Eu acho que é uma área de ponta na física encontrar um supercondutor em condições ambientes. Nesses casos, a revisão por pares deveria ser mais rigorosa e criteriosa. Isso gera citação para a revista, mas falando mal do artigo, refutando o artigo, o que pode lançar dúvidas sobre o processo de revisão da Nature.”

(Colaborou Roger Marzochi)