Um estudo publicado no dia 6 de novembro na Physical Review Letters intitulado “Interdependent Scaling Exponents in the Human Brain”, realizado com participação de cientistas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), demonstra que o cérebro humano em repouso apresenta padrões matemáticos de organização que atravessam diferentes escalas de observação. Os autores do estudo, Daniel Castro, Ernesto Raposo e Mauro Copelli, da UFPE, e Fernando Santos, da Universidade de Amsterdam, mostraram que o cérebro humano em repouso não é apenas um monte de regiões independentes, mas um sistema que se auto-organiza, cuja atividade em diferentes escalas está relacionada entre si e ao funcionamento cognitivo e estrutural. Esses achados oferecem novas ferramentas para investigar doenças neurológicas, envelhecimento e intervenções terapêuticas.

Utilizando séries temporais de imagens de ressonância magnética funcional (fMRI) em estado de repouso, os pesquisadores aplicaram o método do grupo de renormalização fenomenológico (uma técnica inspirada na física estatística) para “reduzir” recursivamente a resolução dos dados (coarse graining). A partir desse processo, foram estimados três expoentes de escala: a variância da série temporal, o logaritmo da probabilidade de silêncio e o maior autovalor da matriz de covariância.

Os resultados mostram que esses três expoentes não variam de modo independente. Pelo contrário: foram encontradas relações lineares analíticas entre eles, o que indica uma organização intrínseca da atividade cerebral em diferentes níveis de “zoom”. Além disso, esses expoentes apresentaram correlações estatisticamente significativas com variáveis clínicas (como volume de substância cinzenta) e comportamentais, como desempenho cognitivo. Esse tipo de organização lembra o que se observa em sistemas físicos próximos a pontos críticos de transição, nos quais variáveis distintas obedecem a leis de escala universais. O estudo sugere que o cérebro pode operar em uma condição análoga, entre ordem e desordem, o que lhe conferiria tanto estabilidade quanto flexibilidade.

“Ainda não sabemos até que ponto podemos levar essa comparação: o cérebro realmente funciona de maneira similar a esses sistemas já conhecidos, mas também encontramos fenômenos novos, que podem exigir uma compreensão diferente. Um dos argumentos que defendem essa hipótese é que um cérebro num regime mais próximo do crítico dá um equilíbrio entre sensibilidade e estabilidade para processar e transmitir estímulos sensoriais. Em teoria, isso otimiza a maneira como a informação circula no cérebro, permitindo que ele desempenhe suas funções de forma mais eficiente”, explicam os cientistas da UFPE em entrevista por e-mail.

Para a comunidade de pesquisadores em neurociência e física aplicada, essas descobertas são importantes por dois motivos principais: primeiro, porque abrem caminho para que os expoentes de escala funcionem como biomarcadores potenciais da saúde cerebral ou da existência de alterações neurofuncionais; segundo, porque indicam que conceitos e métodos da física estatística podem ter utilidade crescente no entendimento da complexidade cerebral.

Segundo os autores, esse estudo é fruto da ação coletiva de vários cientistas. O Prof. Mauro Copelli, do grupo de neurociência de sistemas e computacional do Departamento de Física da UFPE (DF-UFPE), tem trabalhado nessa interface entre física e biologia e investigado possíveis assinaturas de fenômenos críticos no cérebro ao longo dos últimos 20 anos. “A ideia de adaptar essa ferramenta específica para neuroimagem veio da oportunidade de colaboração com o Prof. Fernando Santos, que recebeu Daniel Castro (então aluno de doutorado de Mauro, que já aplicava a técnica do grupo de renormalização fenomenológico a dados de eletrofisiologia) no Dutch Institute for Emergent Phenomena (DIEP) em Amsterdã para realizar o projeto. Na volta, o grupo se uniu ao Prof. Ernesto Raposo, que deu corpo à parte teórica do trabalho”, explicam os cientistas.

O trabalho é vinculado a dois projetos de pesquisa financiados pelo CNPq: um deles integra o Programa Conhecimento Brasil, que promove a colaboração com pesquisadores brasileiros no exterior (processo 444500/2024-3), e o outro é o recém-aprovado INCT Computação Neural (processo 408389/2024-9). Na visita científica ao DIEP, Daniel Castro recebeu bolsa da Universidade de Amsterdam.

A participação da UFPE reforça o papel da pesquisa brasileira de vanguarda neste campo interdisciplinar para explorar a “sinfonia invisível da mente” a partir da matemática, imagens cerebrais e teoria dos sistemas complexos. E se o cérebro, afinal, parece operar entre ordem e improviso, talvez não seja um exagero dizer que ele se comporta como um bom free jazz: cada parte soa livre, mas todas obedecem a uma estrutura invisível de interação. Uma música que se compõe a si mesma e que a ciência começa, pouco a pouco, a decifrar em suas escalas. “A complexidade do cérebro nos obriga a ressignificar e expandir os conceitos e teorias que já existem sobre como o comportamento coletivo emerge a partir das ações das partes. Apesar dessa área da ciência estar apenas na infância, acreditamos que essa busca por princípios gerais é bastante válida, tanto pelas aplicações quanto pela beleza de entender as coisas ao nosso redor”, dizem os cientistas da UFPE.

(Colaborou Roger Marzochi)