“Uma escola que tinha apenas uma sala de aula, um livro e quadro com giz.” É assim a lembrança de Antônio Gomes Souza Filho sobre a Escola Isolada Sítio Mutuca, na comunidade de Mutuca, no sertão de Jucás no Ceará, onde iniciou seus estudos até a 4ª série, frente a grandes adversidades. Quem ver hoje o diretor de avaliação e presidente substituto da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), não imagina quantas batalhas foram conquistadas frente ao acesso à educação na zona rural e seca do sertão nordestino. Em outubro, o professor Antônio Gomes alcançou mais um feito de sucesso: recebeu o diploma de membro da Academia Mundial de Ciências (The World Academy of Sciences – TWAS).

Eleito em 2024, quando 47 novos cientistas passaram a integrar a academia internacional, Antonio Gomes recebeu o diploma em cerimônia que aconteceu durante a 17ª Conferência Geral da Academia Mundial de Ciências, realizada de 29 de setembro a 2 de outubro, no Rio de Janeiro. Com o tema “Construindo um futuro sustentável: o papel da ciência, tecnologia e inovação para o desenvolvimento global”, o evento foi organizado pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), entidade da qual Antonio Gomes já é membro, em parceria com a TWAS.

O físico Antonio Gomes (UFC) recebeu o diploma de membro da TWAS durante a 17ª Conferência Geral da Academia Mundial de Ciências.

“Minha formação foi toda na escola pública e fui beneficiado por várias políticas públicas de educação e ciência. Foram essas políticas públicas que me permitiram viver o ambiente de uma escola que tinha apenas uma sala de aula, um livro e quadro com giz, passando por uma escola agrotécnica com laboratórios e internato. Foi fundamental o internato para que eu pudesse concluir o nível médio. E na mudança para a Universidade que fica a 440 km da minha casa, foram decisivos a residência universitária e o restaurante universitário”, explica Antonio Gomes, em entrevista por e-mail ao Boletim SBF.

Antonio Gomes é ainda professor Titular do Departamento de Física da Universidade Federal do Ceará (UFC), mas já atuou como pesquisador visitante da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entre 2009 a 2010. Ele publicou ainda 260 artigos em periódicos internacionais especializados. É autor e co-autor de sete artigos de revisão convidados e cinco capítulos de livros (springer-verlag) e co-autor do livro “Solid State Properties From Bulk to Nano” publicado pela Springer-Verlag em 2018.

“A ciência no mundo vive um momento interessante, pela primeira vez na história a maioria dos autores de trabalhos científicos está nos países de renda média e baixa. Isso muda a geografia de geração de conhecimento com duas características importantes, o padrão de qualidade também se aproxima dos países com alta renda e as pesquisas são mais direcionadas para atender os objetivos do desenvolvimento sustentável da ONU”, diz o cientista. Leia a entrevista completa abaixo:

Professor, o senhor descreve sua eleição para a TWAS como uma conquista coletiva, construída junto a colegas e estudantes. De que maneira o trabalho em grupo e as colaborações internacionais moldaram sua trajetória científica?

Eu trabalhei desde a iniciação científica na área de física da matéria condensada ou física de materiais e realizando experimentos. Portanto, nessa área é natural as colaborações pois realizar uma determinada pesquisa demanda preparação de novos materiais, preparação de amostras e dependendo do fenômeno a ser estudado demanda também diversas técnicas e às vezes instrumentação. Essa característica demanda naturalmente o envolvimento de vários pesquisadores e assim as colaborações surgem naturalmente. Tive a sorte de ter um orientador, o Prof. Josué Mendes Filho, que por meio da sua rede de contatos na UFMG, Unicamp, USP e UFSCAR, me deu algumas oportunidades de se inserir em áreas que estavam iniciando em alguns grupos de pesquisa de excelência no Brasil e no exterior, e isso fez muita diferença, pois com as oportunidades das bolsas de formação da CAPES eu consegui realizar parte da minha formação em diversos centros. E obviamente as colaborações que surgiram no período da minha formação se fortaleceram depois que me tornei pesquisador e aí pude ter aprovado nas agências de fomento projetos em rede.

O senhor menciona que tudo começou em uma escola isolada, seguida pela agrotécnica e pela universidade pública. Como essa vivência com diferentes realidades educacionais influenciou sua visão sobre o papel da educação pública na formação de cientistas no Brasil?

Minha formação foi toda na escola pública e fui beneficiado por várias políticas públicas de educação e ciência. Foram essas políticas públicas que me permitiram viver o ambiente de uma escola que tinha apenas uma sala de aula, um livro e quadro com giz, passando por uma escola agrotécnica com laboratórios e internato. Foi fundamental o internato para que eu pudesse concluir o nível médio. E na mudança para a Universidade que fica a 440 km da minha casa, foram decisivos a residência universitária e o restaurante universitário. E para além dessas condições materiais básicas, foi fundamental o programa de iniciação científica que me possibilitou vivenciar a pesquisa durante todo meu curso de bacharelado em Física. E depois o programa de doutorado sanduíche me colocou nos laboratórios do MIT trabalhando no grupo da Profa. Millie Dresselhaus. Então olhando para meu itinerário formativo, só posso agradecer às políticas públicas, pois elas transformaram minha vida. E essa é uma das razões pelas quais eu dedico parte da minha energia para fazer gestão de educação, ciência e tecnologia para que possa dar minha contribuição para o fortalecimento dessas políticas que transformam a vida de muitos brasileiros e muitas brasileiras.

Em sua fala no post da UFC nas redes sociais, o senhor cita a importância da “soberania científica” dos países em desenvolvimento. Quais áreas da ciência o senhor acredita que são estratégicas para o Brasil fortalecer essa soberania nos próximos anos?

A ciência desenvolvida no Brasil tem avançado em várias frentes e algumas áreas conseguem um protagonismo internacional bastante expressivo, e citaria aqui a odontologia, medicina, zoologia e ciências veterinárias. Ainda temos o desafio de avançar em termos de relevância em diversas áreas pois ainda estamos próximos da média mundial em várias delas. O País foi capaz de estruturar um bom sistema de pós-graduação e construir infraestrutura de pesquisa complexa como é o caso do Sirius, para citar um dos vários exemplos. As ciências ambientais e as áreas de energias renováveis são estratégicas para o fortalecimento da soberania científica do Brasil. Explorando o potencial da biodiversidade a ciência brasileira tem demonstrado capacidade de impactar o mundo com novas tecnologias. As áreas da saúde, biociências e recursos naturais tem um padrão de excelência que certamente fortalecem a soberania científica do Brasil no cenário das transformações que o mundo experimenta na contemporaneidade.

Suas pesquisas abordam propriedades eletrônicas e vibracionais de diferentes materiais usando espalhamento de luz. Como o senhor enxerga o potencial desses estudos para aplicações tecnológicas e para o desenvolvimento sustentável, tema da conferência 17ª Conferência Geral da Academia Mundial de Ciências, no Rio, que terminou dia 2 de outubro?

A minha linha de atuação é no entendimento de propriedades físicas, eletrônicas e ópticas principalmente, de materiais. Em grande medida é uma atuação na área de ciência básica que permite a aplicação desses materiais em diversas áreas tecnológicas. Desde quando iniciei estudos em nanomateriais de carbono, muitas das propriedades que foram entendidas e engenheiradas nesses materiais passaram a constituir parte de dispositivos na área de energia, por exemplo, o que contribui para a transição energética. Mais recentemente nos envolvemos também com a preparação de nanocarbonos que estão sendo demonstrados com capacidade de recondicionar solos, ou seja, os materiais carbonáceos sendo utilizados para contribuir com a melhoria de fertilidade dos solos do semiárido, algo muito importante no contexto da sustentabilidade.

A TWAS valoriza o impacto social da ciência em contextos de desigualdade. Na sua opinião, qual deve ser o principal compromisso ético e humano do cientista brasileiro diante dos desafios globais de hoje?

A ciência no mundo vive um momento interessante, pela primeira vez na história a maioria dos autores de trabalhos científicos está nos países de renda média e baixa. Isso muda a geografia de geração de conhecimento com duas características importantes, o padrão de qualidade também se aproxima dos países com alta renda e as pesquisas são mais direcionadas para atender os objetivos do desenvolvimento sustentável da ONU. No Brasil temos evidências dessas mudanças em diferentes dimensões. Uma que podemos citar é o protagonismo atual das instituições localizadas na Amazônia na produção de conhecimento sobre a Amazônia. Esse é um avanço estratégico e que precisa ser fortalecido.

(Colaborou Roger Marzochi)