Soprava um vento frio que entrava ao som do farfalhar das folhas das árvores pela janela de uma sala no terceiro andar do prédio Tokamak, no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP). Mesmo após o início da Primavera, não se registravam temperaturas tão baixas em São Paulo em uma manhã como aquela desde 2014. É nessa sala espartana, com computador, estante repleta de livros, uma garrafa de conhaque com um copinho transparente à frente e uma foto de uma viagem inesquecível ao Pantanal, feita há 22 anos em um jipe de 1976, na companhia do filho e de um amigo, que o físico Ricardo Galvão buscava silêncio para se concentrar.
Presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Galvão buscava evitar repórteres, ansiosos para saber se ele ocupará a vaga de Guilherme Boulos (PSOL) na Câmara Federal após a nomeação do deputado para a Secretaria-Geral da Presidência da República, no dia 20 de outubro. Galvão é suplente de Boulos pela Rede Sustentabilidade, pois entrou na política após enfrentar a fúria da extrema-direita no governo anterior, quando era presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos. A reportagem do Boletim SBF precisou acreditar na missão, uma vez que a entrevista, que havia sido combinada na semana anterior, corria o risco de não acontecer frente aos movimentos políticos. Galvão não respondia e-mail nem whatsapp.
“Essa questão da vaga na Câmara vem sendo comentada desde março, quando o deputado Boulos foi convidado pelo presidente para assumir o ministério”, explica Galvão. “Mas ainda há questões sendo definidas. Não só partidárias: nós somos parte de uma federação, a Rede Sustentabilidade com o PSOL. E há algumas indicações, embora eu não tenha sido contatado oficialmente, de que haveria possibilidade de a ministra Sônia Guajajara, após a COP-30, sair do ministério e voltar para a Câmara. Se isso acontecer, ela ocuparia a vaga, então naturalmente eu não assumiria. Caso isso não aconteça, aí dependendo ainda de uma conversa com a ministra Marina Silva, eu assumiria”, explicou Galvão.
Após a edição desta reportagem ontem, a SBF recebeu hoje (23/10) a confirmação de que ele ocupará a vaga de Boulos na Câmara. “A Sociedade Brasileira de Física gostaria de, em nome da comunidade científica, agradecer o professor Ricardo Galvão pela sua dedicação durante o período em que foi presidente do CNPq, movendo o País em defesa da ciência. A SBF deseja que, uma vez na Câmara dos Deputados, o professor Galvão continue esse trabalho de excelência”, afirma Sylvio Canuto, presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF).
Até chegar a Galvão, é preciso passar por uma porta de vidro do antigo prédio no qual há um aviso em destaque: proibido fumar. Mais do que um alerta de saúde pública, é um lembrete da existência de um raro equipamento em estudo naquele local – o Tokamak. Essa máquina é capaz de produzir em seu interior as mesmas reações que ocorrem no Sol, sendo uma promessa de energia limpa no futuro.
Fogo amigo
Além da dança das cadeiras no mundo da política, Galvão também foi alvo de crítica e fogo amigo. O motivo é que a Chamada CNPq nº 49/2024 – Bolsas recebeu 8.573 candidaturas, um aumento de 17% em relação à edição anterior, mas selecionou apenas 907 pesquisadores. Físicos de renome, como o físico Paulo Artaxo, membro do Conselho da Sociedade Brasileira de Física (SBF), fizeram críticas públicas ao governo. De acordo com a planilha do Resultado Preliminar da Chamada 49/2024 – CNPq – Bolsas no País, das 907 bolsas classificadas como “favoráveis”, apenas 30 pertencem à área do conhecimento “Física”, o que representa 3,31% das bolsas aprovadas. O valor total aprovado para as bolsas de Física soma R$ 2.186.370,80, o que representa cerca de 1,76% dos R$ 125 milhões de investimento total.
As bolsas aprovadas em Física estão distribuídas por 14 unidades da Federação. São Paulo e Rio de Janeiro lideram com seis bolsas cada, seguidos por Rio Grande do Sul (5), Paraná (4), Minas Gerais e Ceará (3 cada), Santa Catarina e Paraíba (2 cada). Maranhão, Goiás, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Sergipe e Pernambuco aparecem com uma aprovação cada. Os projetos aprovados estão vinculados a instituições como Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Estadual de Maringá (UEM), Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre outras.
Um total de 58 propostas de bolsas na área de Física foram classificadas como “DESFAVORÁVEL” (não aprovadas) nessa chamada. Essas propostas foram distribuídas por diversos Estados, com a seguinte divisão: São Paulo (SP) registrou 15 propostas, Rio de Janeiro (RJ) 13, Paraná (PR) 7, Minas Gerais (MG) 6, Rio Grande do Sul (RS) 5, Rio Grande do Norte (RN) 4, Ceará (CE) 3, Paraíba (PB) 3, Pará (PA) 2, Espírito Santo (ES) 2, Piauí (PI) 2, Pernambuco (PE) 1 e o Distrito Federal (DF) 1. As instituições envolvidas nessas propostas não aprovadas incluem universidades de destaque, como a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Federal do Paraná (UFPR), entre outras.
Rio de Lágrimas
“Duvido alguém que não chore pela dor de uma saudade”, cantam Tião Carreiro e Pardinho em “Rio de Lágrimas”. O presidente do CNPq talvez tenha saudade de quando era apenas cientista, frente aos desafios de gerenciamento do CNPq hoje e, agora, em sua cadeira no Congresso Nacional. Galvão explica que não é só a Física que está sofrendo com o número reduzido de bolsas. Segundo ele, o número de bolsas de pós-doutorado “tem sido muito pequeno”.
“Isso não vem dessa nossa gestão, já anteriormente vem ocorrendo. E ocorre no CNPq e também na CAPES, uma quantidade de bolsas de pós-doutorado bastante pequena. No caso do CNPq, essas bolsas também concorrem com as bolsas de produtividade de pesquisa, que são para pesquisadores já formados. É claro que essas questões sempre vêm de limitações orçamentárias. O orçamento não é infinito, semprehá limitações orçamentárias”, explica o presidente do CNPq.
Ao mesmo tempo, esse pouco é o muito que o governo atual tem conseguido fazer. Segundo ele, só no ano passado o governo investiu mais de R$ 400 milhões em bolsas. “Então os recursos não são poucos, é um recurso altíssimo. Na bolsa de pós-doutorado, por outro lado, precisa tomar um pouquinho de cuidado, porque essa chamada é só parte das bolsas de pós-doutorado que nós concedemos”, explica. Galvão argumenta que são concedidas bolsas de pós-doutorado também em projetos de pesquisa, citando como exemplo, a aprovação de mais de R$ 150 milhões em bolsas de pós-doutorado no exterior, além de bolsas de pós-doutorado em projetos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).
“De qualquer forma, somando as diversas formas de concessão, nós estamos muito aquém da demanda. A demanda total foi da ordem de 8 mil bolsas (Chamada CNPq nº 49/2024). E o que pudemos atender é pouco, se bem que esse é ainda apenas o resultado preliminar. Porque toda vez que o CNPq divulga o resultado de uma chamada, ele reserva uma boa quantia para levar em conta os pedidos de reconsideração. É possível, às vezes, ter havido algum erro no julgamento, então o resultado final ainda não saiu. É possível que o número de bolsas de projetos aprovado aumente. Mas não chegará, claro, a atender os 8 mil, e no caso da física, é bastante alto também.”
Ele afirma que houve uma melhoria muito grande entre o governo anterior e o governo Luiz Inácio Lula da Silva e que o Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia “aumentou muito nos últimos anos”. “E na realidade, mesmo o do CNPq, mesmo no projeto de lei orçamentária para o ano que vem, nós teríamos menos recursos que tivemos esse ano. Então, a situação orçamentária não está boa. Acabei de ver que a Academia Brasileira de Ciência (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) acabaram de mandar um ofício ao presidente Lula solicitando um aumento do orçamento. Isso é realmente consequência da restrição orçamentária, não há outra razão.”
Mas, ele afirma, “não é que no governo Lula houve uma redução do orçamento”. “O governo Lula teve o grande mérito, logo no início recuperou o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, inclusive aprovando a lei que proíbe seucontingenciamento. Esse foi realmente um grande alívio, porque só nesse ano tivemos mais de R$ 14 bilhões investidos. Metade vai para recursos reembolsáveis, para empresas, e metade vai para recursos não reembolsáveis, que atendem instituições de ciência e tecnologia. Só que esses recursos não são abertos. Pela própria constituição do fundo, eles estão em projetos estratégicos prioritários. No ano passado tivemos 10. Esse ano vamos ter 12 projetos estratégicos prioritários, que são absolutamente necessários.”
Dentre esses projetos, estão os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), que no ano passado receberam investimentos de mais de R$ 1,6 bilhão para cinco anos. “Esses são recursos substanciais”. E nesses institutos também há bolsa de pós-doutorado. Então a visão de que só essa chamada atende à demanda de bolsas de pós-doutorado, não atendendo tudo, é um pouco distorcida. Institutos nacionais também têm bolsa de pós-doutorado”, afirma Galvão.
Há vida fora da Academia
O professor Galvão explica que o atual governo vem também realizando um grande esforço para incentivar a criação de empregos para doutores fora da academia, incentivando não apenas emprego formal em grandes empresas, mas também instigando nos cientistas a ideia do empreendedorismo. Segundo ele, os críticos não percebem que hoje estão sendo formados mais de 22 mil doutores por ano. Apesar de o País ter um número menor de doutores por 100 mil habitantes em comparação aos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o ritmo de formação brasileira está acima da demanda por professores. “A estimativa é que tenhamos uns 300 mil professores com doutorado. Se nós pensarmos que a cada 30, 35 anos um professor se aposenta, nós teríamos que ter… uma taxa de reposição para esses professores que vão para as universidades de 10 mil por ano, aproximadamente. Uma conta de padaria, dizemos. Mas tem 12 mil doutores a mais. Então, pensar que todos os doutores serão absorvidos pelo sistema governamental é ingenuidade pura. Isso não vai acontecer. Por isso, há um esforço muito grande do governo, fortalecido pelo governo Lula, para que tenhamos doutores no setor produtivo não acadêmico, como empresas, indústrias, etc.”
A ideia não é apenas dar emprego a essas pessoas, porque essa iniciativa também reflete a busca de um desenvolvimento econômico sustentável do País. “Nós temos plena consciência de que o Brasil não vai ter um desenvolvimento sustentável, socialmente justo e soberano sem forte investimento no que chamamos inovação acionada pela ciência, as empresas tendo doutores fazendo novos projetos. E esperamos que a comunidade acadêmica também entenda isso, que os doutores formados não são só para ser professores. A sociedade necessita desses doutores dentro desse novo cenário da economia do conhecimento, necessita desses doutores atuando no setor produtivo não acadêmico”, defende o cientista.
Nesse sentido, o CNPq está implementando um projeto com a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), no qual haverá bolsas para que os doutores sejam treinados em inovação e empreendedorismo nas unidades da entidade. “Esse esforço está mudando um pouco o sistema tradicional que o governo via para ciência e tecnologia no país”, explica Galvão, citando exemplos como o IFUSP, o IPEM, o Instituto de Física de São Carlos e o Instituto Euvaldo Lodi (IEL). “Nós damos bolsas para melhorar o empreendedorismo. Os doutores trabalharam em projetos de desenvolvimento nas indústrias. Esse programa é muito exitoso porque, de cada cinco bolsistas que entram na indústria trabalhando, quatro são empregados. E isso é essencial para o desenvolvimento do Brasil em aquilo que o Brasil tem que ter domínio soberano. Não adianta aquela visão antiquada dos empresários de comprar a tecnologia e adaptar; isso tem que alterar. Senão o Brasil nunca vai avançar na economia do conhecimento. E estamos vendo movimentos também muito construtivos nessa direção.”
Seja no CNPq ou no Congresso, o professor Galvão presta um importante trabalho ao Brasil e à busca de sustentabilidade ambiental por meio de suas pesquisas com o Tokamak: não é à toa que ele se associou à Marina Silva. O frio desta Primavera de 2025 não é maluquice do tempo, mas descuido de homens e mulheres tanto em postos de comando de empresas e instâncias políticas, até o sujeito que joga lixo da janela do ônibus.
“Tomara meu Deus, tomara / Que tudo que nos separa / Não frutifique, não valha” na canção de Alceu Valença vingue, e que a saudável pressão necessária a se fazer sobre qualquer governo não seja a “Gota d’Água” de Chico Buarque, que criou um “pote até aqui de mágoas”, mas que a utopia inspire no nosso sonho “o amor Brasil” de Milton Nascimento em “Coração Civil”: “Se o poeta é o que sonha o que vai ser real / Bom sonhar coisas boas que o homem faz / E esperar pelos frutos no quintal.”
(Colaborou Roger Marzochi)







