A física quântica não necessariamente dará origem ao melhor computador do planeta, por enquanto, tudo é promessa e pesquisa na busca de reduzir erros que parecem pequenos, mas que causam grandes estragos. Mas aquilo que já sabemos há mais de cem anos sobre a Mecânica Quântica tem sustentado boa parte da tecnologia contemporânea e pode aprimorá-la ainda mais. Dos semicondutores às fibras óticas, o campo abriu espaço para dispositivos que transformaram a vida cotidiana. Agora, ao se aprofundar nos detalhes da mecânica quântica, os cientistas continuam encontrando efeitos capazes de aperfeiçoar os circuitos eletrônicos que já usamos, explorando dimensões sutis do comportamento dos elétrons.

Foi nesse caminho que se inseriu um estudo aceito pela revista Physical Review Letters (PRL) no dia 11 de agosto de 2025, liderado pelo físico brasileiro Marcello Barbosa da Silva Neto e com participação do físico brasileiro Caio Lewenkopf, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além de colaboradores e parceiros nacionais e internacionais, alunos de mestrado e de doutorado. Um dos resultados mais animadores é que o telúrio pode ser aplicado em equipamentos eletrônicos e chips, uma vez que forma o chamado telureno, material bidimensional que reúne propriedades semicondutoras e quânticas de grande interesse tecnológico.

“O telureno é um material formidável porque pode ser incorporado em chips e processadores. Ele é bidimensional e isso facilita aplicações. Além disso, pode ser usado em retificação, que é o controle do fluxo de corrente, algo sempre desejado na eletrônica”, diz o professor Marcello, em entrevista ao Boletim SBF, sobre o artigo “Quantum geometry and the electric magnetochiral anisotropy in noncentrosymmetric polar media”, que será publicado na PRL nos próximos dias, como sugestão do editor do periódico científico.

A pesquisa trata de um fenômeno de nome complexo: anisotropia magnetoquiral elétrica. Em termos simples, a corrente elétrica deixa de ser simétrica, passando a fluir de maneira diferente dependendo da direção. É como se, numa estrada, os carros corressem mais rápido rumo ao Norte do que ao Sul. Esse desbalanço não é fixo e pode ser ajustado por um campo magnético externo, como se um ímã invisível controlasse a velocidade dos veículos. Trata-se de um efeito “não recíproco”, em que o material responde de forma distinta ao inverter o sentido do movimento. Marcello lembra que esse princípio está na base da eletrônica desde a invenção do diodo. “O diodo é praticamente uma via de mão única. E mecanismos que podem prover retificação são sempre bem-vindos”, afirma.

O trabalho começou como uma tentativa de demonstrar teoricamente uma conjectura feita há 20 anos pelo físico experimental holandês Gerrit E. W. Bauer Rikken. Ele sugerira que uma corrente elétrica atravessando uma região com campos elétrico e magnético perpendiculares teria mais facilidade em um sentido do que no sentido oposto. “Nós conseguimos demonstrar isso usando um conceito moderno e poderoso, chamado geometria quântica. O bônus foi perceber que existia um material real em que a teoria se aplicava: o telureno, fabricado pela primeira vez em 2017 pelo grupo do professor Peide D. Ye, em Purdue. Ele é de um grupo experimental sensacional, fantástico. Eles são nada menos do que brilhantes”, explica Marcello.

Do violão ao chip

Para observar o efeito, os cientistas utilizaram a técnica de “transporte de segunda harmônica”. A ideia é semelhante ao que acontece em uma corda de violão: além da nota fundamental, surgem harmônicos que reverberam outras notas musicais além de oitavas, que formam uma série harmônica, matéria de estudo da Vibroacústica. No caso dos elétrons, quando a resistência depende da própria corrente, aparecem respostas em frequências múltiplas da original. “Se sua corrente oscila a 100 hertz, a voltagem pode aparecer em 200 hertz. É o segundo harmônico, um fenômeno não-linear. Foi isso que observamos no telureno”, explicou Marcello.

Além disso, há uma característica física importante: o telureno é composto apenas por átomos de telúrio, que se organizam em hélices, como espirais de caderno. Essas hélices podem ser destras ou canhotas, e ao se formar o cristal, uma das quiralidades acaba predominando. Essa estrutura em espiral é o que define se os “carros” da estrada eletrônica terão vantagem em subir ou descer.

Além disso, o material se encaixa na conjectura ao reunir os elementos necessários: campos elétrico e magnético perpendiculares e ausência de centro de simetria. Isso garante a presença de efeitos não-recíprocos que se revelam nas medidas experimentais e foram comprovados pelos cálculos teóricos.

Geometria invisível

Outro ponto central está na chamada geometria quântica, um “mapa invisível” do espaço onde as funções de onda dos elétrons se espalham. Defeitos topológicos nesse espaço, como nós de Dirac ou de Weyl, criam curvaturas que desviam os estados eletrônicos, favorecendo um sentido em detrimento do outro. Marcello compara a situação à relatividade geral. “Assim como corpos massivos deformam o espaço-tempo e desviam a luz, no telureno a métrica quântica deforma o espaço de Hilbert, puxando os elétrons para certas direções. É a física de Einstein dentro de um material nano.”

A possibilidade de controlar a retificação é outro trunfo. Variações na corrente, na polarização, no campo magnético e na voltagem permitem ajustar o fluxo de elétrons. Isso abre perspectivas para aplicações em circuitos CMOS ultraescalados, que são a base da microeletrônica atual.

Segundo Marcello, o efeito pode ser revertido de modo engenhoso. “Se você fabricar um filme com a quiralidade oposta, inverte o fluxo. E também é possível controlar a intensidade do fenômeno via voltagem, aproximando-se ou afastando-se das regiões deformadas do espaço recíproco. É um material extremamente versátil.”

Nos experimentos, realizados em filmes finos de telureno, os pesquisadores observaram uma “escala universal”: independentemente dos detalhes do material, a intensidade do efeito segue uma lei matemática bem definida. Essa universalidade sugere que há uma receita escondida nas equações, capaz de guiar futuras aplicações.

Estrada aberta

Embora, por ora, os experimentos estejam restritos a temperaturas muito baixas, há avanços para levar o fenômeno a condições ambientes. Isso seria crucial para integrá-lo a dispositivos do dia a dia. “O telureno é um semicondutor promissor. Colocado sobre um substrato, com contatos preparados, ele poderia ser integrado a um chip. A expectativa é enorme, tanto pela novidade científica. Afinal, é um material descoberto em 2017. Mas sim pelas possíveis aplicações em eletrônica”, afirmou Marcello

O estudo envolveu ainda seus alunos e ex-alunos da UFRJ, como Pedro Vale Lopes, Kaio Edson Marra de Souza e Victor Velasco Roland da Silva, além dos professores Caio Lewenkopf do Campus do Fundão da UFRJ e do professor Marcus Vinícius de Oliveira Moutinho, do Campus de Duque de Caxias da UFRJ, responsável pelos cálculos de DFT que confirmaram a parte elétrica essencial para o efeito. “Foi um trabalho liderado pela UFRJ, com colaboração de colegas na Europa, nos EUA e na China. Estamos muito orgulhosos de que em apenas um ano conseguimos resultados sólidos em um material tão novo”, diz Marcello. O estudo mostra que aprofundar o conhecimento em mecânica quântica não significa apenas apostar em computadores quânticos futuristas. Significa também descobrir novos mecanismos em materiais já conhecidos, mecanismos capazes de refinar os dispositivos eletrônicos que moldam a vida contemporânea. A estrada aberta pela física quântica no início do século passado continua a ser percorrida, revelando atalhos e curvas inesperadas, que agora podem ganhar espaço não apenas em laboratórios, mas dentro dos processadores que sustentam a vida digital.

Assista à entrevista completa no canal da SBF no YouTube

(a partir do dia 29/08 – 14h)