Em julho de 2025, a cientista Alinka Lépine-Szily completou 68 anos de Brasil. Professora titular da Universidade de São Paulo (USP), ex-diretora do Laboratório Aberto de Física Nuclear — que abriga o Acelerador Pelletron e o sistema RIBRAS —, Alinka é uma das referências em Física Nuclear no país. Mas sua história de vida vai muito além da ciência: é também um testemunho de sobrevivência, coragem e resistência frente aos traumas da Segunda Guerra Mundial e à repressão política que assolou a Hungria em meados do século XX.
Alinka tem um papel importante na história institucional da ciência brasileira. Esteve presente na sessão de fundação da Sociedade Brasileira de Física (SBF), em Blumenau, em 1966, quando ainda era estudante de pós-graduação. “Eu não era uma das figuras principais, mas estava lá.” É sócia efetiva da SBF desde o início, em 1967.
Filha de uma mãe química e de um pai professor da Escola Politécnica de Budapeste, Alinka nasceu em 1942 em uma família com tradição nas ciências exatas. “Meu avô já havia sido professor, era uma família que trabalhava com ciências exatas”, lembra. Mas a guerra interrompeu brutalmente a estabilidade da família. Com o fim do conflito se aproximando, e o avanço das tropas soviéticas, sua mãe fugiu com os dois filhos para o oeste. O pai de Alinka morreu em abril de 1945, em um bombardeio americano.

Ela tinha menos de quatro anos quando passou por um campo de refugiados próximo a Berlim. “Era um campo mantido pelos americanos, não tinha comida. Estávamos cobertas de sarna e a única proteína era óleo de fígado de bacalhau.” Parte dessa infância traumática foi apagada de sua memória: “Todo esse período se apagou da memória. Tive uma infância razoavelmente perturbada”.
Da cidade das crianças ao exílio
Ao retornar à Hungria em 1946, foi acolhida por um tio materno, Gábor Sztehlo, um pastor luterano que salvou cerca de duas mil crianças judias. Ele fundou o lar “Gaudiopolis” — a “cidade da alegria” —, onde as crianças organizavam sua própria vida em sistema de autogestão. “Era fantástico. As crianças faziam seu próprio governo. De 4 a 18 anos, tinham professores e total autonomia.”
O sonho, no entanto, durou pouco. Em 1950, o regime comunista fechou as casas mantidas por Sztehlo. A família de Alinka passou a viver com parentes no interior e, depois, retornou a Budapeste, onde a mãe voltou a trabalhar como química para sustentar os dois filhos e a avó. “Ela trabalhava de dia em um instituto de pesquisa e à noite fazia traduções técnicas. Falava várias línguas. Eu não me sentia prejudicada.”
Em 1956, Alinka viveu intensamente a Revolução Húngara, uma insurreição contra o controle soviético. “Eu afirmo que não era uma revolução antissocialista, era anti-imperialista. A Hungria era explorada pela União Soviética, que levava nosso gás, nosso urânio, sem liberdade alguma.” Após dias de euforia, os tanques soviéticos voltaram à cidade e esmagaram a revolta. A família decidiu fugir.
“Saímos de Budapeste no dia 1º de dezembro. Pegamos um trem até perto da fronteira, descemos no meio do caminho e caminhamos até uma aldeia.” Um camponês guiou a família até a fronteira, passando por patrulhas soviéticas. “Nunca vou me esquecer: rastejamos de barriga por uma pista asfaltada iluminada, com soldados a cada 50 metros. Eu com 14 anos, meu irmão com 17, minha mãe com 40 e poucos, bebendo conhaque depois.”
Chegada ao Brasil
Após passagens pela Áustria e Alemanha, onde viveram em campos de refugiados e conventos, Alinka, sua mãe e seu irmão decidiram vir para o Brasil. Um tio da família já havia imigrado para cá nos anos 1940, quando o governo Getúlio Vargas contratou engenheiros húngaros para trabalhar na Fábrica Presidente Vargas, em Piquete (SP). “Fomos ao consulado brasileiro em Viena, e ficamos esperando de janeiro até julho de 1957. Durante este período de espera, vivemos em vagões abandonados, com salvo-conduto que nos permitia usar o transporte público de graça. A gente ia a muitos cinemas, restaurantes davam comida. Levamos uma vida de refugiados, até que foi divertida.”
Alinka desembarcou no Brasil aos 15 anos, com o ginásio completo. “Tivemos muita sorte. Havia muitos húngaros em São Paulo.” No Brasil, Alinka trilhou um caminho acadêmico de excelência. Graduou-se em Física pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em 1964 e obteve o doutorado no Instituto de Física da mesma universidade em 1972. Desde então, construiu uma carreira sólida na área de Estrutura e Reações Nucleares, com foco em espalhamento elástico, reações entre íons pesados e núcleos instáveis e exóticos.
Atualmente, é professora titular e dirige o Laboratório Aberto de Física Nuclear, onde atua com o acelerador Pelletron e o sistema RIBRAS, que permite a produção de feixes radioativos para estudos de fronteira na física nuclear.
Ciência, democracia e memória
Apesar de ter vivido os horrores do comunismo autoritário, Alinka mantém uma posição crítica e equilibrada: “Sou de esquerda, apesar de ter vivido no comunismo. Mas é necessário democracia e liberdade”. Ela distingue o ideal de autogestão e igualdade da repressão política. “Na revolução de 56, as fábricas não iam voltar para os antigos donos. Havia autogestão, era maravilhoso.”
Sua trajetória pessoal e acadêmica é, acima de tudo, uma afirmação da possibilidade de construir ciência de ponta mesmo depois de experiências extremas. “Minha mãe perdeu o marido na guerra e nos criou sozinha. Quando apareceu a oportunidade de vir para o Brasil, ela dizia: ‘o futuro é aqui’..”
Seja pelas contribuições à física nuclear, pela incansável defesa da ciência e da liberdade ou por sua trajetória de superação, Alinka Lépine-Szily é, há 68 anos, um verdadeiro símbolo de inspiração, especialmente para as mulheres na ciência.
(Colaborou Roger Marzochi)