“Se vi mais longe, foi por estar sobre os ombros de gigantes.” Essa é uma célebre frase escrita por Isaac Newton numa carta enviada a Robert Hooke no século 17, no qual explicava que suas descobertas só foram possíveis porque ele pôde se apoiar no conhecimento acumulado por grandes cientistas antes dele, como Galileu Galilei, Johannes Kepler, René Descartes e, até mesmo, Copérnico. Se foi uma ironia destinada a Hooke, seu desafeto declarado, ninguém sabe responder. Observando pelo lado filosófico dos caminhos da ciência, é um exemplo muito bonito de reverência a todos que o antecederam.
É com essa mesma reverência que Constantino Tsallis, pesquisador Emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), se refere aos seus mestres, especialmente agora, que a sua q-entropia conquistou mais uma importante comprovação, cujos dados estão no artigo Anomalous velocity distributions in slow quantum-tunneling chemical reactions, publicado no dia 25 de março no periódico Physical Review Research / Letters em coautoria com Christian Beck, diretor do Centro de Sistemas Complexos da Queen Mary University of London.
No novo trabalho, a famosa teoria da q-entropia, idealizada em 1985 em um Congresso no México, mas publicada somente em 1988, agora é comprovada em reações químicas peculiares, nas quais as leis no quadro da mecânica estatística de Bolztmann-Gibbs falham. “Na minha sala no CBPF eu tenho a foto de três grandes físicos: Boltzmann, Einstein e Galileu. Essa minha teoria não se opõe de jeito nenhum à teoria de Boltzmann. Inclusive, eu tirei fotografia do túmulo de Boltzmann, fiz um quadro para mim e fiz um outro quadro que dei de presente ao professor Silvio Salinas, da USP”, conta Tsallis, em entrevista ao Boletim SBF.
O cientista nasceu na Grécia, mas escolheu para viver no Brasil, em 1975. Capaz de aliar arte à física, ele foi eleito para a Academia Europeia de Ciências e Artes (EASA) em meados de junho de 2024. Com uma empatia ímpar em um ambiente árduo da matemática na qual estão imersos os físicos, Tsallis é daqueles cientistas que não se aborrece em traduzir conceitos complexos por meio de metáforas, especialmente quando o assunto é entropia, cuja contribuição ampliou os estudos de Ludwig Eduard Boltzmann, um físico austríaco do século 19, conhecido principalmente por ter desenvolvido uma formulação estatística da segunda lei da termodinâmica.
“Muitas vezes me perguntam: ‘Mas o que é entropia?’ Porque energia, a gente até acha que entende, mais ou menos. Mas entropia… esse conceito tão próximo da energia costuma escapar do entendimento das pessoas. Poucos pensam, por exemplo, que tropical, troposfera e entropia têm a mesma raiz grega: tropê, que significa ‘voltas’ ou ‘configurações’. Entropia se refere a isso: um sistema com muitas formas (microscópicas) possíveis. E um país tropical é exatamente assim — agora chove, meia hora depois faz sol, daqui a pouco venta. É múltiplo, é variado. Por isso o nome: tropical”, explica o cientista. “Costumo dizer que entropia é um conceito casado com a ideia de um clima tropical — instável, cheio de possibilidades, em constante transformação. E quando me perguntam: ‘O que é entropia, afinal?’ Eu devolvo com outra pergunta: ‘Você quer uma resposta de 15 segundos, de meia hora… ou de uma semana inteira?’.”
Um sorvete “mágico”
Imagina que você tem um pote de sorvete de morango, bem geladinho, bonito, uniforme, um exemplo usado uma vez pela professora pós-doutora Krissia Zawadzki, do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo, em reportagem no Boletim SBF. Com o tempo, o sorvete vai derretendo. A forma sólida e organizada dá lugar a um líquido meio bagunçado, espalhado.
Isso é a entropia aumentando: o sistema está passando de um estado mais organizado (baixa entropia) para um mais desorganizado (alta entropia). Boltzmann explicou isso acrescentando que há muito mais formas possíveis para as moléculas estarem bagunçadas do que arrumadas. O sorvete derretido tem mais microestados possíveis do que o sorvete inteiro e bonito. Essa é a entropia de Boltzmann, clássica e previsível, quando se lida com sistemas “normais” em equilíbrio.
Mas e se o sorvete for de chocolate e pistache, duas bolas, que ao se derreterem se misturam num sabor diferente, com o pote de sorvete sob o capô de um veículo preto em pleno verão no Rio de Janeiro? E se o pistache derreter mais devagar que o chocolate? Aí começa a mostrar a cara a q-entropia de Tsallis: ela foi criada justamente para lidar com sistemas mais complexos, onde há correlações importantes entre as partes, não necessariamente equilíbrio térmico, ou fraturas na ideia de “tudo se mistura igual”.
O novo artigo do cientista, no entanto, não trata de sorvete — mas de plasma: um gás extremamente quente, cujas partículas carregadas apresentam distribuições de velocidades anômalas, mais precisamente as observadas em reações químicas ultralentas, mediadas por tunelamento quântico em armadilhas de íons. Esse “tunelamento” é algo assim como se as duas bolas de sorvete, em vez de derreterem e se misturarem, pudessem atravessar misteriosamente para o outro lado do pote.
O artigo focaliza um experimento recente e pioneiro conduzido por R. Wild e colaboradores publicado na Nature: Tunneling measured in a very slow ion-molecule reaction. Eles observaram diretamente uma reação química de troca de próton (D⁻ + H₂ → H⁻ + HD) ocorrendo exclusivamente via tunelamento quântico — a tal “passagem mágica” das partículas através de barreiras de energia, impossível pela física clássica. Para que essa reação extremamente rara fosse observável, foi necessário manter densidades altíssimas de reagentes em um volume ultrapequeno, gerando uma série de efeitos térmicos e quânticos não triviais.
O que surpreendeu os pesquisadores do experimento foi que moléculas confinadas na armadilha não seguiam a tradicional estatística de Maxwell-Boltzmann, que prevê uma distribuição específica de velocidades com forma de sino (Gaussiana). Em vez disso, os dados experimentais revelaram uma distribuição mais “gorda”, com caudas mais longas — o que significa que havia mais partículas se movendo com velocidades muito altas do que o esperado. Essa distribuição foi identificada como uma q-Gaussiana, exatamente como prevê a teoria da q-estatística, proposta por Tsallis em 1988 e intensamente desenvolvida ao redor do mundo nas últimas quatro décadas.
Destaque internacional
O novo estudo oferece uma explicação detalhada para esse comportamento a partir de um conceito chamado superestatística, que trata sistemas fora do equilíbrio onde a temperatura não é constante. Em volumes muito pequenos e densidades muito altas, como nas armadilhas de íons, a temperatura flutua de maneira significativa — e essas flutuações afetam profundamente o comportamento das partículas. A teoria mostra que, ao considerar essas variações, a distribuição de velocidades passa a ser descrita não pela exponencial clássica, mas por uma função q-exponencial, típica da estatística de Tsallis. Esta função recupera os resultados clássicos no limite q=1.
Um dos resultados mais notáveis da pesquisa é a relação matemática precisa entre a densidade de H₂ (n) e o índice entrópico q, que quantifica o grau de não-equilíbrio do sistema. Os autores mostram que quando a densidade é muito baixa (o que equivale a um gás ideal), o valor de q tende a 1, recuperando a estatística clássica. Já quando a densidade aumenta, q cresce, podendo atingir valores como 1,25 (para a maior densidade experimental alcançada) ou mesmo 1,4 em situações teóricas de densidade infinita. Nesse último caso, inclusive, a variância da velocidade das partículas deixaria de existir, indicando em tese uma transição para um comportamento ainda mais extremo.
“Este novo trabalho já começa a ganhar destaque internacional. Ele será uma das apresentações principais de um evento dedicado à mecânica estatística não extensiva e às entropias não aditivas, que acontece em Ierevan, na Armênia, no final de agosto, ou seja, dentro de quatro meses. Trata-se de um encontro internacional que reúne pesquisadores do Brasil e do exterior, e o estudo abordado nessa nossa entrevista será um dos grandes destaques da programação”, diz Tsallis.
O estudo vai além e mostra que o índice q também influencia as flutuações de temperatura no sistema. A temperatura média dos íons, por exemplo, pode ser sensivelmente diferente do que a do gás H₂ que os envolve — um efeito atribuído ao aquecimento induzido por radiofrequência (rf) na armadilha. A teoria prevê que essas flutuações térmicas não são “ruído” ou limitações do experimento, mas sim um fenômeno físico fundamental resultante da estrutura quântica e do confinamento extremo dos reagentes.
Outra contribuição importante do trabalho é a introdução de uma lei de área para a quantidade de graus de liberdade térmicos no sistema: quanto menor o volume e maior a densidade, mais dominantes são os efeitos de superfície no balanço térmico. Essa relação, que envolve uma dependência com o volume elevada à potência 2/3, é análoga a leis que aparecem em contextos como a entropia de buracos negros e a teoria do emaranhamento quântico, sugerindo uma possível universalidade do fenômeno.
Entropia não aditiva no espaço
Sobre buracos negros e cosmologia, Tsallis também obteve comprovação da eficácia de uma outra entropia não aditiva chamada de delta-entropia que ele introduziu em 2009. Em 2013, o físico em conjunto com um jovem colaborador publicou um artigo que se tornaria uma referência importante para estudos em cosmologia e astrofísica. O trabalho abordava buracos negros, e propunha uma modificação na clássica entropia de Bekenstein-Hawking — equação que relaciona a área de um buraco negro à sua entropia. “Introduzimos uma modificação baseada na entropia de Bekenstein-Hawking”, explica Tsallis. “Com essa modificação, ela se torna proporcional ao volume, satisfazendo assim a termodinâmica tradicional.”
A proposta, segundo o pesquisador, é que embora a expressão original de Bekenstein-Hawking seja notável, ela não pode ser considerada a verdadeira entropia termodinâmica de um buraco negro. “É uma entropia interessante, decididamente interessante, a única expressão básica que conheço envolvendo as quatro constantes universais independentes da física teórica contemporânea (G, a constante gravitacional de Newton; c, a velocidade da luz no vácuo; h, a constante de Planck e k, a constante de Boltzmann). Mas, para ser a entropia termodinâmica, precisa ser modificada.”
Essa verificação foi proposta pela primeira vez há mais de uma década. Agora, em 2025, Tsallis retomou a ideia em co-autoria com Henrik Jensen, coordenador do Grupo de Sistemas Complexos do Imperial College London. O novo estudo, publicado no início do ano, apresenta uma variação da proposta de 2013, que também resulta em uma forma compatível com a entropia termodinâmica. “Em cima da Bekenstein-Hawking, tem que fazer uma modificação. Essa modificação foi inicialmente feita em 2013 e foi repetida agora, com Jensen, numa situação um pouquinho diferente.”
A principal previsão dessa nova abordagem é a emergência de um parâmetro, o delta, que deve assumir o valor 3/2 (três meios) para que a equação reflita corretamente a entropia termodinâmica. No modelo original de Bekenstein-Hawking, delta é igual a 1. “A entropia termodinâmica não tem delta igual a um. Tem que ter delta igual a três meios.”
A teoria foi posta à prova com dados observacionais de diversas fontes. Uma delas é o experimento IceCube, instalado no Polo Sul, especializado na detecção de neutrinos. Os dados do laboratório apontam um valor de 1,565, extremamente próximo de 3/2. “Este valor é consistente também com os dados provenientes do Observatório Planck, que está dando voltas no sistema planetário solar”, acrescenta o físico. Além disso, a mesma tendência aparece em registros cosmológicos mais amplos, como os dados de abundância dos elementos químicos primordiais — hidrogênio, hélio, lítio — formados nos primeiros instantes após o Big Bang. “Esses porcentuais que os experimentais conseguem medir fornecem 1,499, mais uma vez muito próximo de 3/2, e muito distante de 1.”
Com essas evidências convergentes, a hipótese ganha força como uma possível ponte entre a mecânica estatística não extensiva e fenômenos extremos do Universo. A ideia de que a entropia de um buraco negro precisa ser reinterpretada dentro desse novo quadro pode representar um passo fundamental para integrar as leis da termodinâmica com gravitação quântica.
A chamada q-estatística, proposta por Constantino Tsallis, está longe de ser apenas uma construção teórica: ela tem sido testada — e confirmada — em alguns dos experimentos mais sofisticados já realizados pela humanidade. Um exemplo impressionante vem do CERN, o centro europeu de pesquisas nucleares, onde funciona o LHC (Grande Colisor de Hádrons), a maior e mais poderosa máquina já construída para colisões de partículas. “Essas colisões são profundamente quânticas”, explica Tsallis. “E os experimentos do CERN mostram que a curva experimental é uma q-exponencial ao longo de 14 décadas. Roger, 14 décadas é uma barbaridade experimental!”
Esse número indica uma precisão extrema: significa que a curva segue o comportamento teórico com um controle de 1 parte em 100 trilhões. Ou, nas palavras de Tsallis: “É uma precisão ‘estúpida’. Você está controlando o experimento com uma precisão de 0,00000000000001. E eles verificam essa exponencial ao longo de 14 décadas.”
Esses resultados, no entanto, não surgiram a partir de uma proposta teórica enviada ao laboratório. Eles emergiram diretamente dos dados experimentais, com curvas que se ajustavam consideravelmente melhor à q-estatística do que à exponencial padrão. “Essas verificações nasceram deles. Não fui eu que fui ao CERN propor nada. Eles fizeram os experimentos e encontraram as q-exponenciais.”
Durante anos, os valores observados, sob diversas circunstâncias, para o parâmetro q — 1,14; 1,11 e 1,07 —permaneceram um mistério. Por que esses números apareciam? O que significavam? A resposta veio recentemente, graças ao trabalho de um grupo brasileiro. “Esse enigma permaneceu por uns dez anos. E quem resolveu isso brilhantemente foi um colega nosso da USP, Airton Deppman.”
A descoberta de Deppman, segundo Tsallis, foi notável. Com uma fórmula extremamente simples, ele e seus colaboradores conseguiram relacionar o valor de q com dois parâmetros fundamentais da física de partículas: o número de cores e de sabores dos quarks que emergem nas colisões. “Eles publicaram uma formulazinha que eu acho fascinante. Porque ela liga o q com o número de sabores e o número de cores. E com isso, explicam o 1,14, o 1,11 e o 1,07.”
O trabalho Fractals, nonextensive statistics, and QCD foi assinado por Airton Deppmann, Débora Menezes — ex-presidente da Sociedade Brasileira de Física e atual integrante do CNPq — e pelo pesquisador espanhol Eugenio Megías, da Universidade de Granada. A simplicidade da fórmula surpreende: “É desse tamanhezinho, simples, mas poderosa.” Esse estudo também será destaque na conferência internacional sobre mecânica estatística não extensiva que ocorrerá em agosto, na Armênia. “Não tenha dúvida. O Airton vai a Ierevan apresentar esse resultado. É um marco. Essa verificação experimental vem se somar às muitas outras que estavam esperando por uma explicação. Agora têm.”
Antes, em 2015, um experimento conduzido por um grupo francês em Grenoble levou à verificação precisa de uma previsão feita por Constantino Tsallis quase duas décadas antes. “Foi um experimento com meios granulares — um sistema muito complexo”, lembra Tsallis. “Eles tinham uma câmera impressionante, que filmava e processava simultaneamente as posições e as velocidades de todos os grãos. Um negócio que eu achei espantoso.”
O estudo confirmou, com apenas 2% de erro, uma predição teórica feita por Tsallis 19 anos antes. O artigo, assinado por Gaël Combe e colaboradores, foi publicado na Physical Review Letters. “O artigo não só foi publicado, como recebeu o prestigioso selo de Editors Suggestions. Quer dizer: os próprios editores recomendam aos leitores que leiam aquele paper.”
A publicação, de 2015, teve grande impacto tanto na França quanto fora dela. Gaël Combe é atualmente diretor de um novo e avançado laboratório em Grenoble, especializado no estudo de sistemas tecnológicos complexos. “Ele pediu financiamento ao CNRS — que é o análogo ao nosso CNPq — e recebeu apoio para promover uma colaboração com o Brasil. Os franceses virão ao CBPF, no Rio de Janeiro, e nós iremos a Grenoble. Tudo pago pela França. Veja só o impacto desse trabalho.” Essa verificação experimental ilustra a abrangência da q-estatística.
Um novo convite à ciência – Agora, o novo estudo publicado sob licença aberta e com validação matemática rigorosa na Physical Review Research/Letters, Tsallis e Beck convidam a comunidade científica a testar suas previsões em novos experimentos com armadilhas de íons, variando sistematicamente a densidade dos reagentes e medindo tanto as distribuições de velocidade quanto as flutuações de temperatura. Os autores apontam que cada classe de experimentos terá sua “equação de estado” particular, ou seja, sua própria forma funcional para q(n), dependendo de detalhes como a geometria da armadilha e os parâmetros de estabilidade do sistema.
A pesquisa reforça o papel central da q-estatística no entendimento de fenômenos que fogem ao domínio da física tradicional. E é também mais um exemplo da contribuição duradoura de Constantino Tsallis à ciência contemporânea: ele faz questão de lembrar que de modo algum destronou Boltzmann — apenas pôde enxergar mais longe graças aos grandes mestres que o antecederam. Mestres que nos ensinam que a beleza pode até ser quantificada… mas nunca limitada.
(Colaborou Roger Marzochi)