por Leonardo Sioufi Fagundes dos Santos*
Todos os anos, a sociedade brasileira e grande parte do mundo se mobilizam para uma festa religiosa, a Páscoa. No cristianismo, a Páscoa é a comemoração da ressurreição de Jesus Cristo após uma execução por crucificação há quase 2000 anos. Paralelamente, lojas e supermercados apresentam um coelho como símbolo da Páscoa e vendem ovos de chocolate. A mídia mistura as figuras de Jesus Cristo e do coelhinho da Páscoa em um apelo quase sincretista.
Ícone da ressurreição de Cristo. Fonte: Site Ecclesia.
Por trás da popularidade da festa, há um mistério. A Páscoa não tem data fixa. Por exemplo, no ano de 2020, a Páscoa será comemorada no dia 12 de abril. Já no ano anterior, 2019, a Páscoa caiu no dia 21 de abril. No ano seguinte, 2021, a Páscoa será celebrada no dia 4 de abril. Como calcular a data da Páscoa? A resposta a esta pergunta está na Astronomia. Além disso, é preciso entender um pouco a visão religiosa do mundo por trás do cálculo astronômico.
Alguns ciclos astronômicos.
Do ponto de vista dos moradores da Terra, o planeta está imóvel e o Universo gira em torno dele. A Astronomia anterior à ciência moderna nasceu com a concepção de uma Terra imóvel.
No séc. XVI, o padre polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) retomou uma ideia do filósofo da Grécia Antiga, Aristarco de Samos (310 a.C. - 230 a.C.). Copérnico escreveu que a Terra gira em torno de si mesma e do Sol. Os escritos de Copérnico influenciaram toda a Astronomia moderna.
Escultura em homenagem a Nicolau Copérnico. Fonte: Freeimages.
Em termos da Física atual, não existe movimento absoluto. No referencial da Terra, o planeta está imóvel e o Sol se move. No referencial solar, a estrela está em repouso e a Terra, em movimento.
Apesar de não existir movimento absoluto, os cálculos dos movimentos da Terra e dos outros planetas no referencial do Sol ficam muito mais simples. Sem a simplificação dos cálculos através do referencial solar, os físicos jamais saberiam que as mesmas leis da Física descrevem tanto o mundo terrestre como o celestial.
Representação do Sol e dos planetas no referencial da estrela. O tamanho do Sol e dos planetas está fora de escala. Fonte: Nasa
Há muitos ciclos astronômicos observados na Terra. Os 3 ciclos relacionados aos calendários e ao cálculo da Páscoa são: o dia, o mês lunar e o ano tropical.
O dia.
Para quem mora na Terra, o dia é o tempo que o Sol faz uma volta completa ao redor do planeta, nascendo no Leste, pondo-se no Oeste e renascendo no Leste.
Na descrição copernicana, o movimento solar observado na Terra é o resultado do giro completo do planeta em torno do próprio eixo. Este movimento terrestre é chamado de “rotação”. A Terra recebe a luz solar em uma face e fica sombreada em outra. A medida que a Terra gira, as partes iluminadas passam para o lado sombrio e vice-versa. O dia é o tempo que a Terra leva para dar uma volta completa em torno de si mesma.
Foto da Terra vista da Lua. Na foto a Terra aparece com um lado iluminado (dia) e um sombrio (noite). Fonte: Nasa.
O ano tropical.
Embora o Sol sempre nasça no Leste e se ponha no Oeste, para quem está na Terra, o caminho do Astro Rei no céu a cada dia não é o mesmo. Ao longo dos dias, a trajetória do Sol no céu oscila no sentido norte-sul. O tempo de uma oscilação completa no sentido norte-sul é o ano tropical.
O ano do calendário usado na sociedade brasileira e em quase todo o mundo é o “ano tropical”. Esse calendário é denominado “calendário gregoriano” e voltará a ser comentado.
Nos dias 21 de março e 22 de setembro, ocorre o fenômeno do equinócio, termo latino que significa “noite igual”. No equinócio, as durações do dia e da noite são iguais. Em muitos anos, os equinócios ocorrem nos dias 19 ou 20 de março e 23 ou 24 de setembro.
Após os dias 20 ou 21 de março, o Sol desloca-se para o norte, atinge o extremo norte nos dias 20 ou 21 de junho e volta à primeira trajetória em 22 ou 23 de setembro. Durante este período, os dias no hemisfério norte são mais longos do que a noite, correspondendo às estações primavera e verão. No mesmo período, os dias no hemisfério sul são mais curtos do que as noites, correspondendo às estações outono e inverno. Após 22 ou 23 de setembro, o Sol dirige-se ao sul, atinge o extremo sul nos dias 20 ou 21 de dezembro e retorna ao primeiro caminho em 20 ou 21 de março do ano seguinte, completando o ciclo. Antes de prosseguir, é importante mencionar que as datas dos equinócios são fundamentais para entender a data da Páscoa.
Trajetórias do Sol no céu ao longo do ano. Fonte: COSTA, Ivan Ferreira da; MAROJA, Armando de Mendonça. Astronomia diurna: medida da abertura angular do Sol e da latitude local. Rev. Bras. Ensino Fís., São Paulo , v. 40, n. 1, e1501, 2018 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-11172018000100601&lng=en&nrm=iso>. access on 09 Apr. 2020. Epub June 29, 2017. https://doi.org/10.1590/1806-9126-rbef-2016-0301.
Nicolau Copérnico propôs que o ano tropical é a consequência de dois fenômenos. Em primeiro lugar, a Terra realiza voltas em torno do Sol em um movimento denominado “translação”. Além disso, o eixo da Terra possui uma inclinação, fazendo com que os hemisférios norte e sul do planeta não sejam uniformemente iluminados o ano todo. Entre os dias 19/03 a 21/03 e 22/09 a 24/09, o hemisfério norte fica mais iluminado do que o sul. Nas datas entre 22/09 a 24/09 e 19/03 a 21/03, ocorre o inverso, o hemisfério sul recebe mais luz solar do que o norte. Apenas nos dias dos equinócios (19/03 a 21/03 e 22/09 a 24/09), os hemisférios norte e sul são iluminados igualmente. Além disso, a linha divisória entre os hemisférios norte e sul, o Equador, também é uniformemente iluminado durante todo o ano tropical.
Representação da Terra nos dias 21 de junho (à esquerda) e 21 de dezembro (à esquerda). A linha do Equador (em vermelho) separa os hemisférios norte e sul. A ilustração mostra que no dia 21 de junho, o hemisfério norte (porção acima da linha do Equador) recebe mais luz do que o hemisfério sul (porção abaixo da linha do Equador). No dia 21 de dezembro, a situação se inverte em relação ao norte e sul. Fonte: Dreamstime.
A estimativa atual do ano tropical é de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos.
O ano sideral.
O tempo de uma volta completa da Terra em torno do Sol é chamado de “ano sideral”. O ano sideral é estimado em 365 dias, 6 horas, 9 minutos e 10 segundos.
O ano tropical não corresponde à exatamente uma volta completa da Terra em torno do Sol. Antes que a Terra complete uma volta exata em torno do Sol, o ciclo de luminosidade nos hemisférios norte e sul já realizou um ciclo completo. A diferença entre os anos tropical e sideral é devido ao fato do eixo terrestre girar como um peão. Esse giro é muito lento e é denominado precessão. A precessão completa do eixo terrestre dura 25.770 anos siderais.
Representação fora de escala do final de um ano tropical antes de uma volta completa da Terra (ano sideral). Fonte: Wikipedia.
Em geral, as pessoas usam a palavra ano para designar tanto o tropical como o sideral devido à proximidade destes dois valores. No entanto, o ano ligado ao ciclo das 4 estações, aos calendários e ao cálculo da Páscoa é o tropical.
O mês lunar.
A relação da Lua com a Terra é análoga a do planeta com o Sol. A Lua apresenta um movimento de rotação e outro de translação ao redor da Terra. A rotação lunar coincide com a translação, de modo que a Lua sempre mostra a mesma face para a Terra.
O mês lunar é o período que a Lua leva para completar uma volta em torno da Terra. De forma equivalente, rotação da Lua também demora um mês lunar. A duração estimada de um mês lunar é 29 dias, 12 horas, 44 minutos e 3 segundos. Assim, o mês lunar é aproximadamente igual à 29,5 dias.
As fases da lua são o resultado do deslocamento de sua própria sombra lunar à medida que o satélite gira em torno da Terra. Cada fase da Lua dura um quarto de um mês lunar, o que resulta em 7 dias, 9 horas, 11 minutos e 0,75 segundos. Assim, o tempo aproximado de uma fase lunar é 7,5 dias, pouco mais de uma semana.
Órbita da Lua ao redor da Terra. Fonte: Toda a matéria.
O calendário judaico.
Munido dos conceitos de Astronomia, o leitor pode começar a vislumbrar o cálculo da Páscoa. No entanto, a Páscoa não é uma celebração originalmente cristã, mas da religião judaica. E o cálculo da Páscoa judaica é feito através do calendário judaico.
O calendário judaico tem meses de 29 ou 30 dias. Em média, cada mês judaico tem 29,5 dias, o que é um resultado muito próximo do mês lunar. Os meses judaicos começam no primeiro dia de Lua Nova. Estimando cada fase lunar em 7,5 dias, a Lua Crescente entra no dia 7 ou 8 do mês. No dia 14 ou 15, chega a Lua Cheia. Enfim, nos dias 22 ou 23 inicia-se a Lua Minguante, fechando o mês. Em alguns meses, a Lua Nova começa no segundo dia e as fases lunares devem ser recalculadas. Em suma, os meses do calendário judaico guardam uma relação entre o dia do mês e a fase lunar.
O ano judaico típico tem 12 meses, 6 deles com 29 dias e outros 6 com 30 dias. No total, o ano judaico tem 6x29+6x30=174+180=354 dias. No entanto, em alguns anos é introduzido um mês extra de 30 dias, formando um período anual de 384 dias. Ainda há meses de 30 dias que passam a ter 29 e vice-versa, fazendo com que os anos com 354 e 384 dias ganhem ou percam um dia. Os cálculos para determinar o número de dias de determinado ano judaico serão omitidos deste artigo devido ao excesso de detalhes.
O ano zero do calendário judaico corresponde à época em que os judeus acreditam que o primeiro homem, Adão, foi criado.
O início de cada ano judaico começa próximo ao equinócio de setembro, mas nunca em um dia fixo do calendário gregoriano. Por exemplo, o ano judaico de 5.780 começou no dia 30/09/2019 e acabará em 18/09/2020. Já o ano de 5.781 começará no dia 30/09/2020 e terminará em 06/09/2021.
Os historiadores não tem certeza da origem do calendário hebraico, mas ele já era usado antes do surgimento do cristianismo, há mais de 2000 anos.
A Páscoa judaica.
No judaísmo, a Páscoa é a comemoração da libertação do povo hebreu da escravidão no Egito. A própria palavra Páscoa vem em hebraico Pessach que significa “passagem”. De acordo com a Bíblia, no livro do Êxodo, Moisés teria orientado os hebreus na colocação de um sinal com sangue de cordeiro na porta de suas casas. Um anjo de morte passaria pelas casas com o sinal sanguíneo sem fazer nada, mas atacaria os lugares onde não havia esse símbolo. Nas casas atacadas, os filhos dos primogênitos egípcios teriam morrido.
A Páscoa judaica é celebrada no dia 14 do sétimo mês hebraico, Nisan. As comemorações duram 8 dias.
A Páscoa judaica tem uma peculiaridade astronômica. O ano hebraico começa em setembro ou outubro e cada mês tem 29,5 dias em média, logo, os seis primeiros meses duram cerca de 29,5x6=177 dias. Assim, os primeiros 6 meses do calendário hebraico se completam entre março e abril. Então, o sétimo mês hebraico começa entre março e abril, próximo ao equinócio de março. No hemisfério norte, onde surgiu o judaísmo, o mês de Nisan começava na primavera que sucedia o equinócio de março. No dia 14 de cada mês judaico, a Lua é cheia. Assim, 14 de Nisan é um dia de lua cheia e de primavera, um dia ideal para a celebração de uma libertação.
Embora a Páscoa seja apenas no dia 14 de Nisan, as comemorações duram 9 dias, ou seja, terminam em 22 de Nisan.
Para ilustrar o parágrafo anterior, no dia 29/09/2019 começou o ano hebraico de 5780. O mês de Nisan iniciou-se no dia 26/03/2020. O dia 14 de Nisan de 5.780 corresponde ao dia 08/04/2020. Assim, a Páscoa judaica do ano gregoriano de 2020 foi comemorada em 08/04/2020. As festividades duram 9 dias, então a comemoração da Páscoa judaica em 2020 começou em 08/04/2020 e terminou em 16/04/2020.
O calendário juliano.
Há cerca de 2.000 anos atrás, o Império Romano dominou os arredores do Mar Mediterrâneo, o que incluía quase toda a Europa, Norte da África e parte do Oriente Médio, incluindo a Palestina onde viviam os judeus. O imperador romano Júlio César (110 a.C. - 44 a.C) criou um novo calendário para o Império baseado no sistema egípcio. O nome do novo calendário era uma homenagem a seu criador, “calendário juliano”.
Estátua representando o imperador romano Júlio César. Fonte: História, Júlio César.
O calendário juliano é praticamente idêntico ao atual. O ano tem 365 dias, mas acrescenta-se um dia extra nos anos múltiplos de 4, formando o ano bissexto. Os meses do ano tinham o mesmo nome e a mesma duração daqueles do atual calendário gregoriano.
A duração média do ano no calendário juliano é de (365+365+365+366)/4=365,25 dias, ou seja, 365 dias e 6 horas. Assim, o ano juliano é praticamente igual a atual estimativa do ano tropical, 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos. Com isso, os dias de equinócio e mudanças de estação em geral caíam em dias fixos do ano. A previsão da estação do ano e suas aplicações na agricultura e planejamento urbano tornavam o calendário juliano excelente na administração do império. A pequena diferença entre os anos juliano e tropical teriam consequências séculos mais tarde.
Em média, um mês do calendário juliano tem 365,25/12=30,4375 dias, o que dá uma diferença de quase um dia em relação ao mês lunar. Assim, a relação do dia do mês no calendário juliano com a fase lunar não é precisa. Por exemplo, as Luas Cheias no ano de 1500 entraram nos seguintes dias: 25/01, 23/02, 25/03, 24/04, 23/05, 22/06, 21/07, 20/08, 18/09, 18/10, 31/09, 16/11 e 16/12.
A Páscoa Cristã.
De acordo com os Evangelhos da Bíblia, Jesus Cristo ressuscitou dos mortos em um dia de domingo durante a comemoração da Páscoa judaica. Ao que tudo indica, no primeiro século, a ressurreição de Jesus era comemorada todos os domingos. Gradativamente, diversos grupos cristãos criaram cada um a sua data anual para a comemoração da ressurreição de Jesus.
Como Jesus teria ressuscitado durante a festa da Páscoa judaica, a festa anual da ressurreição também era chamada de Páscoa. Assim como o sangue do cordeiro havia livrado os hebreus do anjo da morte, o sangue de Jesus Cristo salvaria os cristãos da morte eterna. A Páscoa judaica tinha sido ressignificada.
Dentre os vários grupos cristãos, o que mais se destacou e organizou foi o católico. No ano de 325, em uma reunião conhecida como Concílio de Nicéia, uma cidade da atual Turquia, os bispos dos cristãos católicos decidiram padronizar as crenças cristãs e a data da Páscoa. Os bispos decidiram no Concílio de Nicéia que a Páscoa seria comemorada no primeiro domingo após a entrada da primeira Lua Cheia após o dia 21 de março do calendário juliano, que era o dia do equinócio da primavera. Com isso, os cristãos combinavam o calendário juliano, circunstâncias da Páscoa judaica (Lua Cheia próxima ao equinócio) e a marca da comemoração primitiva (o domingo).
No entanto, o Concílio de Nicéia também determinou uma circunstância que a Páscoa deveria ser adiada. Como a Páscoa judaica também ocorria em um dia de Lua Cheia próximo ao equinócio de março, as Páscoas dos judeus e dos cristãos poderiam coincidir. Nesta coincidência, os cristãos deveriam adiar a Páscoa para um domingo seguinte. Como as festas da Páscoa judaica demoram 9 dias, a Páscoa cristã deveria ser celebrada pelo menos 9 dias depois da primeira.
O adiamento da Páscoa cristã para não coincidir com a judaica tinha um simbolismo teológico. De acordo com a teologia cristã, aliança de Deus com a humanidade se deu em duas etapas. Primeiramente, Deus fez uma aliança particular com o povo judeu por meio de Moisés. Posteriormente, Deus selou uma nova aliança com a humanidade por meio de Jesus Cristo. Assim, a sucessão das duas Páscoas representaria as duas alianças.
Um exemplo de cálculo da Páscoa é o que ocorreu no ano do descobrimento do Brasil, 1.500. O dia 21 de março de 1500 era dia de Lua Cheia. A primeira Lua Cheia depois de 21 de março entrou no dia 14 de abril, uma terça-feira. O primeiro domingo depois da entrada da Lua Cheia após o dia 21 de março foi em 19/04/1500. A Páscoa judaica do ano juliano de 1500 foi comemorada no dia 23/03/1500. Assim, a Páscoa cristã não precisou ser adiada e foi comemorada no dia 19/04/1500.
Como curiosidade, o Brasil foi descoberto na Semana após a Páscoa, no dia 22/04/1500, uma quarta-feira. O monte visto naquele dia foi chamado de Monte Pascoal por ter sido visto na semana da Páscoa.
É importante salientar que os cristãos ressignificaram o ano juliano. O ano zero corresponderia ao nascimento de Jesus Cristo. Ao contrário de Adão, Jesus é uma figura histórica, mas o ano exato de seu nascimento ainda é debatido por especialistas. Certamente Jesus nasceu antes do ano zero.
O calendário gregoriano.
Na época do Império Romano, no calendário juliano, o dia 21 de março correspondia aproximadamente ao equinócio da primavera no hemisfério norte. Após alguns séculos, o calendário juliano já não previa corretamente os equinócios. Por exemplo, no ano de 1582, o equinócio previsto para o dia 21/03 ocorreu em 11/03. A razão desta discrepância é a pequena diferença entre o ano juliano e o tropical. Como já foi dito, o ano juliano tem em média 365 dias e 6 horas, enquanto o ano tropical, 365 dias, 5 horas, 48minutos e 46 segundos. O acréscimo de 11 minutos e 14 segundos por ano gera uma adição de 3 dias a cada 400 anos na contagem dos anos julianos em relação aos tropicais. A diferença acumulou-se desde a origem do calendário juliano em 46 a.C., chegando a 10 dias no séc. XVI.
No ano de 1582, o Papa Gregório XIII (1502-1585) criou o atual “calendário gregoriano”, usado no Brasil e em quase todo o mundo. O dia 04 de outubro de 1582 passou a ser 15 de outubro de 1582. Com a subtração de 10 dias, as estações do ano voltariam a ser associadas às antigas datas romanas e o dia 21 de março voltou a coincidir com o primeiro equinócio do ano. Às vezes, o primeiro equinócio ocorre no dia 20 de março, como no ano de 2019, mas isso não constitui um problema.
Pintura representando o Papa Gregório XIII. Fonte:Wikipedia.
Para que esse excesso de 3 dias a cada 400 anos seja retirado, o calendário gregoriano não considera como anos bissextos aqueles terminados em 00 que não são múltiplos de 400, apesar destes anos serem múltiplos de 4. Esse procedimento retira exatamente 3 dias a cada 400 anos. Por exemplo, os anos de 1700, 1800, 1900 e 2000 são múltiplos de 4, portanto, no calendário juliano, eles deveriam ser bissextos. No entanto, 1700, 1800, 1900 terminam em 00 e não são múltiplos de 400, logo, ele não foram contabilizados como anos bissextos no calendário gregoriano. O ano 2000 é múltiplo de 400, então ele foi ano bissexto no calendário gregoriano. Analogamente, os anos de 2100, 2200 e 2300 não serão bissextos, mas 2400 será.
O ano gregoriano é bem próximo do ano tropical, mas ainda há uma diferença. No calendário gregoriano, a cada 400 anos, há 303 anos com 365 dias e 97 bissextos (366 dias). Em média, o ano do calendário gregoriano tem (303x365+97x366)/400=365,2425 dias. Isso significa que o ano no calendário gregoriano tem em média 365 dias, 5 horas, 49 minutos e 12 segundos. O ano tropical tem 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos, o que resulta em 26 segundos em relação à menos em relação ao gregoriano. Como o ano gregoriano tem 26 segundos a mais do que o tropical, essa diferença de tempo é acumulada ao longo dos anos gregorianos. Em 3.324 anos, o excesso de 26 segundos por ano resultará em 26x3.324= 86.424 segundos. O intervalo de 86.400 segundos equivale a 1 dia, logo, 86.424 equivale a 1 dia e 24 segundos. Como o calendário gregoriano foi criado em 1582, a diferença de um dia dos anos gregorianos e tropicais ocorrerá em 1582+3324=4906. Então o equinócio do ano 4906 em diante sofrerá um atraso de um dia no calendário gregoriano. Caso a humanidade exista até essa data e continue usando o calendário gregoriano, o equinócio de março de 4.906 ocorrerá entre os dias 18 e 20 de março.
A data atual da Páscoa na Igreja Católica Romana.
De acordo com o Concílio de Nicéia, a Páscoa deveria ser comemorada após o dia 21 de março do calendário juliano, que era o início da primavera no hemisfério norte. Mas se a primavera não começava mais em 21 de março do calendário juliano, surgia uma questão. A Páscoa deveria ser comemorada após 21 de março do calendário juliano ou após o início da primavera no hemisfério norte? Qual seria a data correta da Páscoa? O Papa Gregório optou pelo rompimento como calendário juliano. Além disso, Gregório XIII também eliminou o adiamento da Páscoa em relação às festas judaicas da Páscoa que perdurava desde o Concílio de Nicéia. Assim, a Páscoa da Igreja Católica Romana é calculada como o primeiro domingo, depois da entrada da Lua Cheia depois do dia 21 de março do calendário gregoriano.
Por exemplo, neste ano de 2020, o dia 21/03 será de Lua Nova. A entrada da primeira Lua Cheia após o dia 21/03/2020 será em 07/04/2020, uma terça-feira. O primeiro domingo depois de 07/04/2020 será no dia 12/04/2020. Assim, a Páscoa da Igreja Católica Romana será comemorada no dia 12/04/2020. No ano de 2021, a primeira Lua Cheia após 21/03 será no dia 28/03, um domingo. O primeiro domingo “após” a entrada da Lua Cheia será o domingo seguinte, 04/04/2021. Assim, a Páscoa da Igreja Romana do ano de 2021 será no dia 04/04/2021.
A data atual da Páscoa na Igreja Católica Ortodoxa.
A jurisdição do Papa Gregório XIII estendia-se apenas aos cristãos católicos romanos. Desde o ano de 1054, os cristãos católicos ortodoxos rejeitavam a autoridade do Papa e todos os ensinamentos da Igreja Romana surgidos apósa separação. Assim, os ortodoxos mantiveram o cálculo da Páscoa através do calendário juliano e o adiamento prescrito no Concílio de Nicéia.
No calendário juliano, nunca ocorreu a subtração de 10 dias em 1582. Além disso, o anos de 1700, 1800 e 1900 foram bissextos no calendário juliano, acumulando um atraso de 3 dias em relação à data dos anos novos de 1701, 1801 e 1901. Então o ano novo juliano começa somente 13 dias depois do início anual do calendário gregoriano. Então o dia 14/01 do calendário gregoriano é o 01/01 do juliano. Em suma, o dia do calendário gregoriano equivale a 13 dias a mais em relação ao juliano. Assim, o dia 21 de março do calendário juliano corresponde ao dia 03 de abril do calendário gregoriano. Então, a Páscoa Ortodoxa ocorre no primeiro domingo depois da primeira Lua Cheia depois do dia 03/04 do calendário gregoriano, sendo adiada em caso de coincidência com as festas da Páscoa judaica.
Bartolomeu I, atual Patriarca Ortodoxo de Constantinopla (2020). Fonte: Agência de notícias DW.
Por exemplo, no ano de 2020, o dia 03/04 será de Lua Crescente. A entrada da primeira Lua Cheia após o dia 04/04/2020 será em 07/04/2020, uma terça-feira. O primeiro domingo depois de 07/04/2020 será no dia 12/04/2020. No entanto, as festas do ano novo judaico em 2020 duram de 8 a 16 de abril. Assim, a Páscoa Ortodoxa foi adiada para o domingo seguinte, dia 19/04/2020.
A Páscoa Ortodoxa pode ocorrer depois ou junto com a Páscoa Latina, nunca antes. Nos anos de 2020 até 2024, a Páscoa Ortodoxa virá depois da Romana. Já no ano de 2025, as duas Páscoas coincidirão no dia 20/04.
As diferenças entre os calendários juliano e gregoriano continuarão se ampliando. Por exemplo, em 2100, será ano bissexto no calendário juliano, mas não no gregoriano. O ano juliano de 2100 começará um dia depois, aumentando a diferença de 13 entre os dois calendários para 14. Tomando o aumento da diferença entre os calendários como 3 dias a cada 400 anos, o dia 01/01/48900 no calendário gregoriano corresponderá a 01/01/48889 do juliano. Então a diferença de um ano entre os calendários gregoriano e juliano demorará um pouco. O autor do artigo omitiu como os cálculos foram feitos para não desanimar o leitor.
Conclusão.
Por trás da data da Páscoa, há muita Astronomia e História. Além disso, não há uma Páscoa, mas várias. Mas todas as Páscoas ocorrem na primavera no hemisfério norte, na época da lua cheia ou pouco depois dela. A combinação de primavera com lua cheia é um convite à libertação e renovação. Enquanto o céu se enche de esplendor, há festa na Terra.
As festas da Páscoa foram exportadas para o hemisfério sul, onde está a maior parte do Brasil. Após o equinócio de março, no hemisfério sul, a estação é o outono, o que tira muito do simbolismo pascal ligado à primavera. Ainda assim, o outono não deixa de ser uma renovação.
Que este artigo possa ressuscitar o interesse dos leitores pela ciência e pela cultura em geral.
* Leonardo Sioufi Fagundes dos Santos é professor de Física da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus de Diadema.
O presente artigo foi publicado orginalmente no blog Quente e Calculista .